Em resposta a um tweet do Presidente da Ucrânia, contendo um agradecimento ao Presidente de Portugal pelo fecho do espaço aéreo a aviões russos, pela unanimidade no bloqueio do acesso ao SWIFT e pela assistência fornecida, o ex-deputado do PCP Miguel Tiago retorquiu, espectacularmente: “Not in my e”.

No rescaldo do seu desaire eleitoral, o PCP vem afixando cartazes clamando que “O Futuro tem Partido”. O ‘P’ maiúsculo importa, podendo antes dizer-se que, para aquele Partido, o futuro tem partido, e, assim, talvez continue a partir. A Ideia Absoluta, o materialismo histórico, a bondade do selvagem, os malefícios da propriedade privada, apesar de, sob alguns pontos de vista, anacrónicos, são todos temas prazerosos de discutir ao jantar, com pão, carne e vinho comprados num supermercado de prateleiras cheias, com a garantia de que qualquer achaque de ebriedade será suprido por uma chamada para o 112.

As análises geopolíticas sobre a invasão russa da Ucrânia abundam e, não estando na cabeça de Putin, dificilmente se adivinham as suas exactas intenções. Chamamos, no entanto, a atenção do ex-deputado do PCP para um artigo de opinião e análise publicado pelo Politico, donde realçamos que, controlando a Ucrânia, a Rússia passa a controlar quase um terço das exportações mundiais de trigo, três quartos das exportações mundiais de óleo de girassol, 16% das exportações de milho, para além de quantidades substanciais de cevada, soja e outros cereais.

Importa esta quantificação por dois motivos: por um lado, pode a Rússia vir a restringir o fornecimento de cereais a países altamente dependentes da Ucrânia, como o Iémen, a Líbia, o Líbano, o Sri Lanka ou o Sudão, assim causando turbulência que absorva a atenção do Ocidente, facilitando a prossecução da sua estratégia; se essa restrição se materializar, será dessa feita em nome do senhor ex-deputado? Por outro lado, se considerarmos o alegado saudosismo histórico de Putin, tacitamente apoiado pelo ex-deputado, devemos também considerar o precedente da utilização da fome como arma, e mais especificamente o Holodomor que Miguel Tiago negou, dizendo que “só existe na cabeça dos nazis ucranianos. Ainda que essa fome e as suas causas sejam objecto de um amplo debate académico, o julgamento da evidência fica ao critério de cada um.

Enfim, querelazinhas domésticas pouco importam a um povo que se vê invadido, arbitrariamente abusado e compelido, quando pode, a fugir do seu lugar. Os deméritos de algumas intervenções da NATO e dos Estados Unidos podem e devem ser discutidos, mas uns não justificam os outros. É axiomático que em Portugal e em quase todo o Ocidente podemos escrever os tweets ou os artigos que quisermos, que existe um Estado de Direito e que, podendo ser melhor, podia ser muito, muito pior. Façamos o exercício: se, nos anos 50 do século XX, se escolhessem duas cidadãs ao acaso, uma dos EUA e outra da URSS, qual delas teria maior probabilidade de fazer uso de uma avoshka, o “saco talvez” (perhaps bag) – recipiente elástico carregado pela população para, em tempos de escassez, trazer qualquer item que fosse encontrado ao longo do dia e que pudesse ser útil?

Como não é em meu nome que se avilta o povo com comentários étnicos ao Rendimento Social de Inserção, ou com insultos dirigidos a famílias residentes em zonas menos favorecidas, também não é em meu nome que se ultraja o povo ucraniano. Se o preço a pagar pela independência da Ucrânia fosse a tolerância de tweets descabidos, quase todos aceitaríamos de bom grado. Como não é, que estas saídas da toca e os silêncios ensurdecedores de alguns partidos políticos sirvam para nos relembrar que, sob uma manta – diáfana – de bondade e utopia se escondem opiniões tão horrorosas como outras que, felizmente, já não estamos na disposição de tolerar.

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