“A vida humana é inviolável.” Esta fórmula da Constituição tem uma força e uma beleza extraordinárias – já o tenho referido várias vezes. Não conheço, nas diversas declarações internacionais de direitos humanos e nas constituições alguma vez adoptadas em todo o mundo, uma forma tão clara, tão bela e tão poderosa quanto esta, para tomar e afirmar posição quanto ao direito à vida.
Deve ser motivo de orgulho para Portugal e os Portugueses. É algo que, com justificada vaidade, podemos mostrar e exibir em todo o mundo: a Constituição mais avançada, nesta formulação e protecção.
É um texto tão admirável, quanto grandes clássicos: a proclamação do sujeito da constituição norte-americana, ao abrir o preâmbulo – “We the people” (Nós, o povo); ou, antes dela, este trecho formidável da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América: “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.” (Consideramos estas verdades auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade.) A nossa é do mesmo gabarito: “Human life is unbreakble.”Notável!
Nesta questão da inconstitucionalidade da lei da eutanásia, sigo integralmente a posição qualificada já expressa por 15 professores de Direito Público, que a manifestam com fundamentos mais amplos: António Cândido de Oliveira, Carlos Blanco de Morais, Fausto de Quadros, Fernando Alves Correia, Jónatas Machado, Jorge Bacelar Gouveia, Jorge Miranda, José Casalta Nabais, José Manuel Sérvulo Correia, Luís Filipe Colaço Antunes, Manuel Afonso Vaz, Maria da Glória Garcia., Maria João Estorninho, Paulo Otero e Vasco Pereira da Silva – um deles, meu muito estimado professor, um dos pais da Constituição e um dos mais reputados especialistas de direitos fundamentais: Jorge Miranda. Mas é nesta emblemática norma constitucional que a minha posição se foca principalmente. Seria uma evidente traição ao verbo, se fosse espezinhada.
O sentido do preceito do artigo 24.º, n.º 1 da Constituição não oferece a mais pequena dúvida. O que é que quer dizer “a vida humana é inviolável”? Quer dizer que a vida humana é inviolável, nem mais, nem menos. Exactamente isso.
Não é o preceito moral e religioso “não matarás”, mas uma norma jurídica fundadora, junto com todos os demais direitos, liberdades e garantias, dirigida ao Estado, escrita no acto e no momento de o “constituir”. Dela decorre, de maneira simples, poderosa e cristalina, que em Portugal, o Estado não pode violar a vida humana nem consentir na sua violação, isto é: não pode, nomeadamente, organizar a morte, administrar a morte, executar a morte. Não pode. É isto que o artigo 24.º, n.º 1 determina.
O Direito pertence muito mais ao senso comum do que muitas pessoas imaginam. Ele tende a traduzir sentimentos gerais da comunidade ou as orientações e regras que um cidadão médio adoptaria, se se ocupasse dos problemas de que se trata e sobre eles houvesse de decidir. A mais nobre tarefa dos legisladores é descobrir, escrever e adaptar aos velhos problemas e às novas situações, realidades e desafios, esse sentido comum do cidadão e a sabedoria da comunidade. Não é o de se embrulhar e à sociedade numa teia intrincada de truques, mistérios e alçapões.
Quanto mais o Direito se aproxima do sentido comum, sem entrar por vielas obscuras e caminhos tortuosos, tanto mais é respeitado e seguido. Mostra-se fácil e intuitivo, mesmo sem estudos académicos nem necessidade de mergulhar nos códigos, nas bibliotecas ou no “Diário da República”. Esse é o direito que nos fala directamente, aquele que entendemos. O outro – o “direito” que carece de muita manobra, de curva e contracurva, de saltos no espaço indecifrável – é o “direito” dos habilidosos, às vezes pior. É o torto.
A interpretação das leis não é tarefa ingente de outro mundo, apenas ao alcance de grandes teóricos. Segue regras comuns de interpretação dos textos: o que está escrito quer dizer o que está escrito. Carrega o poder da palavra.
Ainda assim, qualquer estudante de Direito aprende no primeiro ano as regras que, em casos de dúvida ou de maior exigência, o artigo 9.º do Código Civil fixou para o nosso sistema jurídico. Na reconstrução do pensamento legislativo, o intérprete “não pode [considerar aquele] que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”; e, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” Ou seja, os deputados, os actores políticos em geral, os juízes, outros juristas, os cidadãos, não podem presumir que o legislador constituinte se enganou, que escreveu uma coisa quando quereria escrever outra; nem podem pensar que a Constituição permite uma acção, quando escreveu taxativamente o contrário e uma tal conclusão não tem no texto constitucional o mínimo de correspondência verbal. Isso seria fraude.
O intérprete não é legislador. Não pode imaginar que está escrito na lei o que ele gostaria de lá escrever, mas tem de ler e entender o que está realmente escrito. O intérprete está subordinado à lei e não o contrário.
Os constituintes, aliás, tiveram plena consciência do que estavam a deliberar e quiseram consagrar. A generalidade dos projectos de Constituição, em 1975, continha formulações jurídicas habituais na protecção do direito à vida. O projecto do CDS dizia: «Constituem direitos e liberdades individuais do cidadão português (…) o direito à vida e à integridade física.» O do PS: «É garantido o direito à vida e à integridade física.» MDP/CDE e UDP nada diziam. O do PPD afirmava: «O direito à vida e integridade pessoal é inviolável.» Foi o do PCP a propor a proclamação consagrada: «A vida humana é inviolável.»
Os constituintes tiveram em cima da mesa fórmulas permeáveis ao “juridiquês”, em que o conceito de “direito à vida” pode ser virado da frente e do avesso e prestar-se ao contorcionismo mental. Tratando-se do primeiro dos direitos fundamentais, condição de todos os outros, a Assembleia Constituinte optou por escolher um enunciado do seu pensamento particularmente feliz, porque imune à manipulação das palavras e do seu significado: a vida humana é inviolável. Sendo a Constituição do povo e dos cidadãos, ninguém precisa de juristas para perceber o que isto quer dizer. Foi essa a escolha consciente e marcante da Assembleia Constituinte.
Vivemos tempos de acentuado descrédito da política. Os cidadãos desconfiam cada vez mais. Se esta lei pudesse ir por diante com a actual Constituição, isso seria uma mais vasta e brutal machadada: não só na respeitabilidade da política, mas também na seriedade dos decisores, no valor da Constituição, na rectidão do Direito, na integridade da própria língua.
A Assembleia da República ocupa-se, por vezes, de apreciar a constitucionalidade de iniciativas que são apresentadas. Faz bem. Com os limites e a prudência de não ter a última palavra, longe disso, pode fazer um controlo preliminar sobre o que pode ser grosseiramente inconstitucional. É sintomático que o não tenha feito aqui. É deplorável que a deputada Isabel Moreira, frequente fiscal constitucional das iniciativas de outros, não se tivesse detido um pouco para, mesmo sendo juíza em causa própria, avaliar e constatar, com independência e honestidade intelectual, a manifesta inconstitucionalidade do seu trabalho. E tivesse a hombridade de parar.
Não é que o obstáculo constitucional não possa ser removido. Pode. Será mau se isso for feito, porque o obstáculo é bom; mas uma revisão constitucional que mude o artigo 24.º, pode tornar possível o que hoje não permite. E, tratando-se de matéria protegida pelos limites materiais de revisão constitucional, o propósito exige uma dupla revisão: primeiro, para aligeiramento geral ou específico da matéria dos direitos, liberdades e garantias; depois, a permissão de regimes como a eutanásia, que violam a vida humana.
Se já é errado interpretar-se uma norma distorcendo-a, é inadmissível, por maioria de razão, querer fazer-se uma interpretação desviante de normas constitucionais sobre que impende a garantia reforçada da dupla revisão. Seria trair a norma e o seu sentido, mascarando com uma falsa interpretação o que só uma revisão poderia consentir.
Se formos um Estado de Direito, nenhuma lei pode violar a proclamação, simples e solene, do art. 24.º E nada pode avançar no plano legislativo que não seja pelo caminho da dupla revisão constitucional. Se assim não for, não somos um Estado de Direito.
A questão transcende o problema da eutanásia. Quem mostra estar pronto a violar a Constituição aqui, em matéria de direitos fundamentais, está pronto a violá-la em qualquer outro domínio. Bastar-lhe-á ter a maioria e as circunstâncias de feição. Não pode ser. Teria acabado o Estado de Direito e chegado o reinado do arbítrio.