No passado Domingo, a Venezuela realizou eleições presidenciais. No país da revolução Bolivariana, uma ditadura comunista, desculpem o pleonasmo, onde existe a maior onda de refugiados do mundo (quase 8 milhões de pessoas fugiram do país em busca de liberdade e dos bens essenciais à sobrevivência, segundo as Nações Unidas), o regime continua preocupado em fazer eleições. Não foi surpresa para ninguém que as eleições do último Domingo tenham sido uma fraude. A ideia de que existiriam eleições justas e livres num regime como a Venezuela não passa de uma ilusão. Sendo um regime alicerçado no poder castrense, o mais provável é que o seu fim só possa vir de dentro, através de um pronunciamento militar ou de um golpe militar.

No entanto, não deixa de ser curioso que um regime político que nunca aceitaria outro resultado que não a vitória do seu candidato realize eleições. Apesar de controlar, em grande medida, o resultado eleitoral, o regime não consegue prever – nem controlar – as consequências da fraude. Os riscos de um levantamento social, de protestos violentos ou do apertar da pressão internacional podem ser fatais. Com todos estes potenciais problemas, a pergunta que se impõe é a seguinte: porque é que os regimes autoritários realizam eleições? Aparentemente, todos os incentivos estão alinhados para as elites autoritárias não fazerem eleições. No entanto, nas últimas duas décadas, a ciência política mostrou claramente que, de forma contraintuitiva, as eleições são instrumentos fundamentais para as elites autoritárias manterem o seu poder.

Em primeiro lugar, as eleições servem como mecanismo de distribuição de benefícios materiais e políticos às elites intermédias das ditaduras. Através da eleição de quadros autoritários para lugares-chave, os líderes autoritários garantem que as elites mais populares continuam a trabalhar para o regime e se mantêm ideologicamente alinhadas com o status quo. Nenhuma ditadura funciona sem quadros intermédios. Na maior parte das vezes, as eleições servem como mecanismo de distribuir de forma equitativa e justa os lugares políticos e tudo aquilo que, numa ditadura, lhes está associado, nomeadamente o acesso a recursos financeiros. Para além de cooptar as elites intermédias da ditadura, as eleições também servem para cooptar a oposição. Por um lado, as eleições servem para partir a oposição ao meio, fazendo com que grupos tacticamente mais flexíveis se aproximem do regime acreditando na mudança por dentro. Por outro lado, entregar, de forma limitada e contida, alguns lugares políticos à oposição aumenta a percepção interna e externa de lisura institucional. Quem não se lembra da Ala Liberal no estertor do Marcelismo em Portugal?

Em segundo lugar, as eleições em regimes autoritárias têm uma função absolutamente vital: obter informação acerca dos membros da oposição, dos seus recursos materiais e dos apoios externos de que gozam. No contexto de eleições, as elites de oposição ao regime mobilizam todo o seu capital físico e humano para conseguirem ter o melhor resultado possível, trazendo inclusive para o combate político pessoas ou grupos (por exemplo, Católicos progressistas) que estão mais ou menos adormecidos em períodos não eleitorais. Para além disso, as eleições permitem ao regime obter informação preciosa acerca da distribuição geográfica do apoio à oposição. Através dos votos da população – que revelam as suas preferências verdadeiras – o regime obtém informação com elevado nível de granularidade acerca das bolsas de oposicionistas. Depois da acalmia do período pós-eleitoral, o regime utiliza esta informação para aumentar a repressão e, acima de tudo, torná-la mais eficaz, na medida em que sabe exactamente para onde direccionar os seus recursos repressivos.

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Em terceiro lugar, as eleições nos regimes autoritários têm a função de distribuir benefícios a subgrupos específicos da população que, em troca de benefícios materiais, estão dispostos a ser cooptados pelo regime para votarem de forma fiel no ditador. Na medida em que o regime autoritário detém o monopólio da distribuição de recursos – muitas vezes altamente escassos e que podem representar a diferença entre viver e morrer – não é difícil convencer grupos da população a apoiar o regime. As eleições servem como mecanismo formal através do qual a troca entre benefícios e votos se consuma.

Por último, as eleições servem ainda outro propósito: sinalizar internacionalmente que o regime, apesar de tudo, cumpre os mínimos preceitos eleitorais. Nas últimas décadas, a democracia enquanto modelo de organização política ao qual todos os países aspiram tornou-se dominante no mundo. Hoje, diferentemente do que aconteceu durante o Século XX, os regimes já não se auto-descrevem como autoritários ou ditaduras. Quando Salazar chegou ao poder, durante um período de quebra das democracias na Europa, o próprio regime descrevia-se como “A Ditadura Nacional”. Actualmente, isto é impensável. A democracia enquanto ethos político ganhou um peso que poucos regimes podem dispensar. De resto, nas últimas décadas, apareceram na ciência política vários conceitos a que Collier e Levitsky chamaram “democracia com adjectivos”.

Infelizmente para os Venezuelanos, os que continuam a viver no país, os refugiados e os exilados, as eleições não tiveram qualquer utilidade para a mudança que desejam. Tiveram, no entanto, grande utilidade para o regime de Maduro. Este regime abjecto, tal como muitas outras ditaduras, terá o seu fim. É só uma questão de tempo.