A última vez que aqui escrevi, um dos leitores desejou que eu fosse violado na casa dos meus pais por “um bando de imigrantes coitadinhos transexuais gays e criminosos”. A causa foi, na altura, uma crónica onde defendia que julgar outros por características que não escolheram (como a cor da pele, o país em que nasceram ou a orientação sexual) revelava falta de inteligência. Eu ri-me, porque já ando na Internet há muito tempo. Claramente, atingi algum ponto sensível. Mas este exemplo de agressividade descabida – e tantos, tantos outros, contra tanta gente – merece atenção. Eu normalizei-a. Mas não devia.
Vivemos tempos muito violentos. Contudo, nada parece despertar no utilizador da Internet maior agressividade que o ser confrontado com uma opinião divergente. É verdade que a diferença sempre teve, historicamente, o seu quê de ameaça, tantas vezes por medo ou ignorância. Mas também costumava ser objeto de alguma curiosidade.
Agora, nem tanto. É tudo adversativo. Já não há perspetivas diferentes, há perspetivas erradas. Ninguém dialoga, antes espera – ou, ainda mais comummente, não espera – pela sua vez de monologar. Não há opinião nenhuma que não encontre respaldo num facto da Internet e, se não encontrar, vamos sempre a tempo de o inventar.
Tudo isto é muito grave, claro, mas ainda se toleraria se fossemos todos educadamente ignorantes. Afinal, o politicamente correto, que hoje tem má fama, sempre permitia algum convívio.
Mas a ignorância anda com dentes afiados e vem mordendo a torto e a direito. Não há coelho que tire as orelhas do buraco sem que lhe ferre os caninos um qualquer transeunte que, tomando opinião diferente por vil ataque pessoal, se indignará violentamente, correndo a insultos e desejos macabros o que antigamente se resolvia com um encolher de ombros e um “oh homem, olhe que não é bem assim”.
Temos vivido numa era do conhecimento e da ciência. Tínhamos factos, que valiam todos o mesmo, e opiniões, que valiam em maior ou menor medida consoante a sua validade, o conhecimento e experiência na área do opinador e o respeito dessa opinião pelos factos.
Hoje vivemos na era da popularidade. Quero lá saber se estou certo, desde que ponham like. Para o diabo com os factos, a realidade é o que nós quisermos. As nossas opiniões valem tanto como outras quaisquer. Temos todos direito aos nossos factos. Menos os outros, que estão errados. Que se lixem os especialistas. O conhecimento é sobrevalorizado.
Não há ninguém no planeta que não conheça alguém estúpido. “Estúpido”, assim mesmo, que é como as pessoas se tratam fora do polido mundo das crónicas de jornais – mundo bem diferente, já se viu, das caixas de comentários fronteiriças.
No entanto, ninguém se apresta a reconhecer-se como tal. Em nome próprio, ninguém é estúpido. Na boca dos outros, não se salva um. Claramente, há aqui um desfasamento qualquer.
Contra mim falo, que já fui chamado (e já chamei) de estúpido muitas vezes – e me ponho agora a jeito novamente, com a vantagem, neste caso, de ver com isso o meu ponto provado. Mas já Campos dizia, quantos por aí não se concebem génios, em quartos como o meu, com vista para a Tabacaria do Esteves? Porventura, quase todos os que me leem. E a história não guardará, provavelmente, nenhum de nós.
Só sei que nada sei, dizia Sócrates, o filósofo. O grande idiota. Vivesse hoje, e descobriria que só ele é que não sabe nada. E que sorte seria: a ignorância é uma virtude. Deve ser por isso que, com tantos inteligentes na Internet, vamos vendo tão pouco virtuosismo.
E isso tem um efeito evidente: a malta encolhe-se. Se for para dar uma opinião impopular, é melhor guardá-la para mim, especialmente se – como 75% das pessoas que escrevem em jornais – tiver ambições políticas.
Também passámos a evitar a complexidade, porque coisas complexas são menos populares. Tenho uma página no Facebook que faz crítica de imprensa. Um dia partilhámos um vídeo de uma jornalista a fingir que tinha sido agredida pelo presidente de um clube de futebol. O alcance da publicação superou o milhão e meio de utilizadores. Noutro dia, denunciámos, num longo post com fontes e investigação, um escandaloso ajuste direto entre uma Câmara Municipal e um jornal, que envolvia contratos assinados depois do serviço prestado, conteúdos encomendados em período eleitoral, enfim, um caso relevante, mas complexo. Alcance: setenta mil pessoas. Zero consequências.
É também comum recebermos comentários de leitores que não gostaram da correção que fizemos de uma determinada notícia, porque gostavam mais dela como estava antes. Atenção: não dizem que a notícia original está correta ou que nós estamos enganados. Simplesmente, acham que o erro não estava ali assim tão mal, ou porque não gostam do sujeito da notícia, ou porque reforça uma ideia com a qual concordam. O rigor é de somenos, quando se trata de ser agradado.
Online, somos todos uns mimados. Queremos tudo ao nosso jeito e poder dizer coisas que nunca, no mundo físico, diríamos em frente aos nossos pais. Não queremos que a verdade vença: queremos que a nossa verdade vença. Queremos que os outros a reforcem. Caso contrário, disparamos para todos os lados. Insultamos toda a gente. São todos uns estúpidos e uns privilegiados, menos nós, que atribuímos likes como quem indulta néscios.
Isto não é a esquerda nem a direita. É o sentimento de impunidade, a falta de proximidade com o alvo, a facilidade com que se cospe a bílis. Desumanizamos o outro e desumanizamo-nos a nós.
Mesmo quem não revê o seu comportamento nestas palavras, provavelmente já o viu em muitos lados. É impossível navegar online e não dar de caras com ele. As caixas de comentários, as redes sociais, estão transformadas em paredes de casas de banho públicas.
Preocupa-me a forma como passámos a reagir às opiniões divergentes e como isso nos vem afastando uns dos outros, calando, fechando nos nossos coitos onde somos reis e senhores de coisa nenhuma. Estamos em guerra.
Hoje, simplificam-se os debates, com medo que a complexidade aliene a atenção das pessoas.
Vende-se a privacidade e a dignidade em troca de aceitação e seguidores. Vale tudo, até cortar cabeças.
O jornalismo verga-se à ditadura da maioria e passa a ter que informar entretendo, ou entreter informando, ou lá o que é preciso para que a malta queira carregar nuns links para saber o que se passa à sua volta.
E nós, cá fora, a seguir os comandos dos palhacinhos que nos falam ao ouvido, a ler notícias de faca e alguidar e a culpar os outros por tudo o que vai de mal no mundo, sem olhar a adjetivos ou sentimentos.
O problema somos nós. Online, não somos nada daquilo que, por vergonha ou pressão social, fazemos por aparentar no mundo real. Não lemos coisas longas e difíceis, preferimos ser agradados a ser corrigidos e achamos que os ditames da boa educação e do civismo são regras inconvenientes e desnecessárias.
A boa notícia é que podemos começar a resolvê-lo com um bocadinho de empatia e solidariedade. Parece pouco, mas é suficiente. Discordar, não insultando. Atacar o argumento, sem atacar a pessoa. E apresentar as nossas opiniões, estando disponível para as alterar.
A internet já ultrapassou a fase da adolescência. Vamos passar a viver nela cada vez mais tempo, para o resto das nossas vidas. Está na hora de a tornar um sítio um bocadinho mais maduro, sob pena de vivermos, em permanência, na idade do armário.
João Marecos tem 27 anos, estudou Direito da Informação e da Inovação na New York University, vive em Berlim e é advogado, tendo fundado a Ockham Legal para ajudar Startups tecnológicas a navegar problemas jurídicos. Integrou os Global Shapers de Lisboa em 2014. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.