A solidariedade, como defesa do interesse comum entre os Estados Membros, é um conceito basilar na criação das Comunidades Europeias que mais tarde derivariam na criação da União Europeia. Esse interesse comum é muito mais do que a soma dos interesses particulares de cada Estado Membro, sendo essa importância superior que ajuda a explicar a situação que aqui analisamos.
É hoje claro que a solidariedade da União para com um país terceiro, vítima de uma brutal agressão imperialista por um regime oligárquico e totalitário, terá elevados custos financeiros e sociais não só para os Estados Membros como principalmente para os seus cidadãos. Além dos custos diretos refletidos em apoios de milhares de milhões de euros, a crise energética provocada pela escassez e interrupção de fornecimento de gás e petróleo fizeram disparar os preços da energia, o que agravou drasticamente a inflação que se encontrava numa trajetória de subida já desde a pandemia SARS-COV-II.
Podemos então questionar-nos sobre o que leva a União a agravar as dificuldades dos seus cidadãos numa situação de crise económica a nível global, quando o conflito na Ucrânia envolve apenas países terceiros. Para encontrar esta resposta deveremos analisar o Tratado da União Europeia (consolidado com o Tratado de Lisboa), bem como um documento que lhe está anexo, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Esta carta é fundamental na União e é a base para a relação e gestão da União com os seus cidadãos, com os seus parceiros e pares internacionais, bem como para o seu posicionamento político na cena internacional. Não sendo um texto constitucional formal da União, não deixa, no entanto, de ser o repositório dos seus princípios estruturantes.
Logo no seu preâmbulo é referido que o espaço da União é:
“…um espaço de liberdade, segurança e justiça…” e que se baseia nos “…valores indivisíveis e universais do ser humano…”.
A Carta que descreve a cultura e valores comuns da União descreve direitos e garantias como: o direito à vida, à integridade e dignidade do ser humano, o direito à liberdade e à segurança, o direito à liberdade de pensamento, casamento e religião, o direito à igualdade perante a lei ou à não discriminação.
Também, ainda no seu preâmbulo, refere que esta carta:
”…reafirma (…), os direitos que decorrem, nomeadamente, das tradições constitucionais e das obrigações internacionais comuns dos seus Estados-Membros…”.
Se em conjunto atentarmos ao capítulo I do Título V do referido tratado, verificamos que:
“…A ação da União na cena internacional assenta nos princípios que presidiram à sua criação, desenvolvimento e alargamento, e que é seu objetivo promover em todo o mundo: democracia, Estado de direito, universalidade e indivisibilidade dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, respeito pela dignidade humana, princípios da igualdade e solidariedade e respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional…”
“…Consolidar e apoiar a democracia, o Estado de direito, os direitos do Homem e os princípios do direito internacional;
(…) Preservar a paz, prevenir conflitos e reforçar a segurança internacional, em conformidade com os objetivos e os princípios da Carta das Nações Unidas, com os princípios da Ata Final de Helsínquia e com os objetivos da Carta de Paris, incluindo os respeitantes às fronteiras externas…”
Já o artigo 23º do capítulo II refere que:
“…A ação da União na cena internacional ao abrigo do presente capítulo assenta nos princípios, prossegue os objetivos e é conduzida em conformidade com as disposições gerais enunciadas no Capítulo 1…”
No fundo, estes documentos descrevem de forma muito completa, e até então nenhum outro havia ido tão longe, aqueles que são os valores da civilização europeia, comprometendo simultaneamente a União com o seu cumprimento a nível interno como também nas suas relações externas.
É, portanto, este o contexto que leva a que a União avance com uma proposta a nível internacional, que recolheu apoio do G7, que é constituído pelos países com as 7 economias mais ricas do mundo, bem como da Austrália, de limitação do preço máximo a pagar pelo barril de petróleo adquirido à Rússia.
Pretende-se assim, simultaneamente castrar a economia Russa, fortemente baseada nas exportações de petróleo e gás, e em sequência limitar a sua capacidade militar, paralisando a sua capacidade de agressão. Por outro lado, ao reduzir os preços destes produtos pretende-se reduzir a pressão económica a que estão sujeitos os Estados-Membros e os seus cidadãos e empresas.
A aplicabilidade duma proposta desta natureza, de forma a que seja aceite pelo maior número de parceiros internacionais possível, carece obviamente de difíceis negociações. Para ser exequível, os valores apresentados como teto máximo para a compra do barril de petróleo devem ser ao mesmo tempo realistas e limitadores dos lucros de produção. Obviamente que para Zelensky, como parte lesada pela agressão russa, o objetivo primordial é o mais rapidamente possível levar a economia russa ao colapso total, motivo pelo qual o valor de 65 USD estabelecido é para ele insuficiente.
Objetivamente, no entanto, para que haja aplicabilidade, e acima de tudo efetividade, nesta medida é necessário que os valores acordados sejam realistas, sob pena de a medida se tornar não só inconsequente como simultaneamente mais penalizadora para a União do que para a Rússia, o que se tornaria contraproducente.
É neste ponto que podemos enquadrar as declarações do primeiro ministro português, António Costa, à saída da reunião do Conselho Europeu do último dia 20 de outubro. Se, por um lado, é reiterado o apoio da União, por outro, refere a necessidade de preservar os cidadãos e as empresas europeias. Para o efeito, entra mais uma vez aqui o pilar europeu da solidariedade, desta vez de caráter interno. Como já anteriormente referido, trata-se de um pilar basilar da construção europeia desde os primórdios da União imaginada por Schumann e Monnet.
Este é um claro exemplo de um interesse comum, que se sobrepõe às vontades individuais de cada Estado-Membro, o que leva ao apelo do primeiro ministro português para a aquisição conjunta no mercado de energia que permita assim estabilizar preços e consequentemente contribuir para a estabilização da inflação que neste momento se verifica descontrolada.
Respeitando o princípio da subsidiariedade, pede-se ainda que a própria União avance com a simplificação da legislação europeia para as energias renováveis, permitindo assim uma mais efetiva aplicação das sanções energéticas à Rússia, avançando de forma firme para a transição energética. Por outro lado, e de forma solidária, foi também pedido um alinhamento das posições dos Estados-Membros no sentido de ser dada uma resposta comum aos cidadãos e empresas, independentemente do Estado-Membro onde se encontrem, não permitindo discrepâncias decorrentes da capacidade financeira de cada um. Este é, portanto, mais um exemplo claro da intervenção inestimável da União em situações para as quais os Estados não revelam capacidade.
Sabemos que é nas dificuldades que as relações e as uniões são postas à prova e este é disso um claro exemplo. Sabemos também que é nas dificuldades que são potenciados os conflitos, sendo a tendência natural a deriva para o individualismo e no caso dos Estados para o nacionalismo, no entanto, sabemos também que a União faz a força.
Há um ditado africano que afirma: “se queres chegar rápido, corre sozinho, se queres chegar longe, corre acompanhado”, parece-me que se enquadra bem no que é a União.
Se a solidariedade é um pilar deste magnifico feito político, económico e social, embora inacabado, que é a União, outro pilar fundamental são os seus valores e a crença na moderna democracia liberal, sendo a defesa destes valores definidores da nossa civilização que compromete a União na sua defesa não só interna como externamente. É essa necessidade que nos leva a optar por um caminho de dificuldades económicas e sociais a nível interno quando seria talvez mais fácil ignorar o que se passa à nossa porta, embora fora das nossas fronteiras.
Seria mas fácil mas seria também a traição dos nossos valores, resultado de séculos de história e de cultura comuns, que a seu tempo levaria à corrosão de um pilar fundamental da construção europeia.