É extremamente difícil decidir ir a um psicólogo. É como dar um passo para o abismo. Uma das principais razões é o medo. Luísa estava num enorme sofrimento. Acumulado há anos. Mas o temor de poder descobrir coisas sobre ela própria era mais assustador do que a sua angústia. É um paradoxo muito difícil de ser experienciado: estar em sofrimento e sentir medo de procurar uma saída. Neste contexto, é fácil cavar o abismo do isolamento.

“Não sei o que se passa comigo. Deixei de fazer a minha vida. Despedi-me no mês passado. Não consigo andar nos transportes públicos. Até as pessoas mais chegadas estou a evitar. Não vou ter com as minhas amigas. E acho que não há nada que se possa fazer… estou com medo de estar a ficar louca. Vivo uma amargura que parece não ter fim, mas isto acaba por ser uma carapaça, que passei a conhecer e onde passei a viver. Também isso é muito estranho. Não sei… tenho medo disto que estou a viver, mas tenho horror de saber o que é isto que eu tenho.”

Luísa teve uma experiência única. A sua. Que a levou a uma profunda depressão e a ter ataques de pânico quase diários. Mas tinha algo comum: o medo de descobrir o que isso significava sobre si mesma. O sofrimento estava lá, mas o medo também. E era muito forte.

A vergonha também estava presente. Sobretudo perante os outros. E assim Luísa vivia outro paradoxo: como qualquer pessoa, vive num mundo de relações humanas, mas eram estas que agora provocavam este sofrimento e a faziam sentir-se ainda mais humilhada perante si mesma. Porque a vergonha é uma emoção ainda mais estimulada pelo olhar do outro. Mesmo que este nada diga.

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Ser visto por outro é ter mais consciência de mim. Os olhares dos mais próximos traduziam assim um contacto mais directo com a sua dor, com o medo de si mesma, e com a vergonha de não ser capaz. Com a culpa.

“Não quero arrastar os outros para isto… não quero voltar a desiludir ninguém.” Luísa escondia-se ainda mais. Isolava-se, chegava a cortar-se para aliviar a dor da alma. “Acho que vou ao ponto de me odiar. Tenho raiva do que sou e de como me sinto.”

O sentimento de inadequação agudizava-se. Mas, apesar disso, outra razão muito forte impedia-a de procurar ajuda: a confiança. Sentia-se muito fragilizada quando na verdade, e como qualquer pessoa, precisava de se sentir capaz, em controlo, de saber lidar consigo, com outros, com a vida. Sentia-se num lugar de vulnerabilidade. E assim ainda é mais difícil confiar. Poderia sentir-se segura? Poderia sentir a confiança de abrir os seus espaços mais íntimos? De caminhar, desta feita pelos abismos interiores, de procurar respostas no meio da escuridão, com alguém que não conhece e que não deixa também de ter um olhar?

É extraordinariamente difícil confiar quando se está tão fragilizado. Luísa sentia que já tinha sido magoada noutras relações. Em relações pessoais, mas também, noutros contextos onde tinha de facto feito pedidos de ajuda. E, assim, agudizava-se a dificuldade de voltar a abrir os seus espaços interiores. Esta questão ligava-se quase impercetivelmente, com a descrença. Não confiar, mas também não acreditar.

“Tenho medo de estar a ficar louca, mas acho que também já não há nada a fazer.” Um processo que se autoalimenta, esse o de não saber como poder confiar, e de não acreditar que algo pode ser feito por si. O sentimento de desesperança. Na falta de crença de que é possível haver mudança, resultados benéficos, não se dá um passo.

Luísa debatia-se com estas questões, por entre monólogos silenciosos, que mantinha consigo há muito tempo. E este é um factor facilmente negligenciado: o tempo. “Eu tenho evitado o que sinto, acabo por não falar com ninguém. Vou passando por fases, mas de vez em quando sinto-me realmente mal, como agora. Passam-se muitos momentos e que penso acabar com tudo isto. Magoo o meu corpo para tentar atenuar…”

Por entre fases, silêncios e permeios de vida tinham passado anos. As fases, em sofrimento psicológico, podem significar anos. Tempo, muito tempo, onde uma crença comum nos empurra para aquele “vamos andando no dia a dia” ainda que acumulando uma bagagem de sofrimento e descrença. Luísa tinha aquele olhar perdido que perscruta o vazio: “não sei o que fazer da minha vida, o que decidir, que rumo tomar. Sinto-me perdida”.

Pedir ajuda é muito difícil. Entender as razões significa compreender, em primeiro lugar, as mais profundas. Perceber que a pessoa está como que presa numa armadilha, da qual na verdade quer sair, mas que todo um novelo de emoções, de desesperança e perda na capacidade de confiar, se instalou para lhe retirar a capacidade para agir por si mesma.

Até que uma réstia de força levou Luísa a pedir ajuda. A tempo.

(O nome de Luísa é fictício porque Luísa não existe. Ou melhor, o caso de Luísa, em concreto, não é verdadeiro, mas resulta de muitos casos, de muitas Luísas que tenho acompanhado ao longo de mais de 25 anos de profissão. Há muitas, por aí. E precisam de ajuda.)

Daniel Sousa é psicólogo clínico e psicoterapeuta, professor no ISPA – Instituto Universitário e diretor da clínica da mesma instituição. Tem-se dedicado ao ensino universitário, atividade clínica, investigação científica e formação profissional.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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