Parece que a culpa é da alínea k). K, da Kafka. Só pode ser. Ainda de fosse a alínea g), de “gomas”, talvez de entendesse, ou a alínea s), de “sandes”, era mais razoável. Mas não: o raio da alínea prescreve “a observância da proibição de consumo de refeições ou produtos à porta do estabelecimento ou nas suas imediações”, logo o senhor da Lousã que foi à máquina buscar umas gomas (à máquina, não a um estabelecimento) e o desgraçado de Torres Novas que levou a sandes para dentro do automóvel (mas deixou-se ficar por ali), caíram sob a alçada da alínea k). Talvez só mesmo aquela velhota de Paço d’Arcos que estava a comer um pão mesmo junto à padaria é que não havia dúvida, alínea k) com ela – mesmo que a multa possa ter significado o equivalente a uma semana de pensão de velhice.
E assim estamos. À conta desta e de outras alíneas há gente multada por correr numa praia e operações stop onde perguntam se vamos às compras, passear o cão ou se, em alternativa, temos o dever de recolher ao lar. Pior: há um país que aplaude o zelo das autoridades. Não só acha normal, como bate palmas e pede mais. Um país, eu diria mesmo um mundo – porque leio jornais, porque vejo televisões, porque estou atento ao que se passa noutros países – que parece rendido ao poder mais musculado deste “novo normal” e que parece disposto e tratar como loucos todos os que se atrevem a discordar. Ou mesmo só a duvidar.
Às vezes interrogo-me sobre quando foi que tudo isto começou, quando foi que começámos a habituarmo-nos a menos liberdade? Talvez tenha sido a seguir ao 11 de Setembro. Eu lembro-me. “Temos de sacrificar algumas liberdades ao nome da nossa segurança” era o mantra desses dias. Eu próprio defendi essa ideia, citando Fareed Zakaria que já então previa que “por todo o Mundo veremos os governos tornarem-se mais poderosos, mais intrusivos e mais importantes”. Não se enganou. Para garantir a nossa segurança não passaram apenas a dificultar a entrada nos aviões – também começaram a espalhar câmaras de vigilância um pouco por todo o lado e a multiplicar as bases de dados.
Quando as redes sociais chegaram, e começamos a partilhar as nossas vidas na internet, encolhemos os ombros: que é que tínhamos a esconder? Quando nos pediram para trazer sempre uma factura com o nosso número de contribuinte, achámos bem, era por uma boa causa, era para evitar a fuga ao fisco. Quando começámos a usar smartphones com geolocalização não nos preocupámos com a privacidade, pois era, e é, muito mais confortável abrir um navegador e ele ter logo à nossa disposição a lista dos destinos para onde costumamos ir àquela hora. Afinal para que serve a inteligência artificial senão para nos tornar a vida mais fácil?
E ainda não havia pandemia. Sem darmos por isso, ou sem nos importarmos, fomos deixando que a Autoridade Tributária passasse a saber onde almoçamos e jantamos, onde fazemos compras e onde passamos férias. Sem nos importarmos fomos deixando o nosso rasto electrónico por todo o lado, da tão prática Via Verde aos novos passaportes com reconhecimento facial. Sem que sequer tivéssemos noção disso, os algoritmos que trabalham em cima das gigantescas bases de dados que alimentamos continuamente já sabem mais sobre nós do que nós próprios.
A profecia estava a materializar-se – os governos estavam a tornar-se mais poderosos, mais intrusivos e mais importantes – e mas só longinquamente tínhamos noção de que isso um dia podia ser perigoso. Na China o número de câmaras de videovigilância já se conta por centenas de milhões, essas câmaras já têm capacidade de identificar rostos usando mecanismos de inteligência artificial e o regime já as utiliza para controlar a população, não apenas os dissidentes, mas para saber quem merece viajar em 1ª ou 2ª classe por se comportar como um “bom cidadão”.
“O medo não convive bem com a liberdade”, escrevia eu há quase 20 anos logo a seguir ao 11 de Setembro, para argumentar que aquilo que os terroristas pretendiam era precisamente limitar a nossa liberdade criando um clima de medo. Hoje talvez pudesse antes escrever que “o vírus não convive bem com a liberdade” pois com o vírus veio um medo como há muito não sentíamos.
E com o medo veio também a irracionalidade – e muito menos liberdade.
A primeira coisa que aprendemos, ou que devíamos ter aprendido, com esta crise é que a ciência não é feita de certezas, é feita de dúvidas. A mesma ciência que conseguiu o quase impensável – produzir várias vacinas viáveis e eficazes em menos de um ano, algo inimaginável antes deste vírus ter colocado à humidade os desafios que colocou – ainda não é capaz de nos dizer tudo aquilo que gostaríamos de saber sobre como nos comportarmos para diminuirmos os riscos de contágio.
Demasiados políticos não estiveram à altura das circunstâncias, e mesmo países onde os sistemas de saúde estariam melhor preparados resistiram mal. O melhor indicador para avaliar como os diferentes países se comportaram ainda é o do excesso de mortalidade face a um ano normal, e no “ano Covid” Portugal, como se vê no gráfico abaixo, não fica nada bem no retrato. Nada que surpreenda, mas aparentemente também nada que apoquente em demasia o gentio.
Por cá o que perturbou a paz dos espíritos foi uma manifestação de “negacionistas” e um juiz “negacionista”. A gente de bem deste país não descansou enquanto não viu o homem suspenso de funções – a Justiça desta vez foi célere – e a diligência até mobilizou o director-geral da PSP, sinal de que a pátria estava mesmo em perigo. A figura, de resto assaz caricata, agradeceu a publicidade, mas todo o alvoroço não mostrou senão como se invertem facilmente prioridades. Distraímo-nos com isto enquanto somos o país que detém a presidência da União Europeia mas onde menos se discute o porquê do fiasco do programa europeu de vacinação. Porquê? Porventura porque todos pensam que estaríamos ainda pior se a Europa não tivesse tratado das compras por nós.
Entretanto as prioridades do plano de vacinação vão sofrendo tratos de polé, ao sabor dos diferentes grupos de pressão. Quando é claro, na maior parte dos países da Europa, que o único critério inquestionável é o da idade, aqui vão introduzindo grupos profissionais atrás de grupos profissionais, com os nossos octogenários, os mais vulneráveis, os que já podiam e deviam estar todos ou quase todos vacinados, a ficar para trás. Tem razão quem alerta que muitos netos acabarão a receber a vacina antes dos avós agora que o grupo de pressão dos professores levou a melhor e lá os temos, nas escolas, de braço estendido, a levar a sua picadinha.
Mas tudo isto são detalhes. Já estamos habituados a ser mal governados. Já sabemos que faz parte da nossa natureza a chico-espertice. Já não esperamos muito mais – se é que esperamos alguma coisa – de um Governo que já nos falhou em quase tudo.
O que me preocupa mesmo é por todo o lado se fala de um “novo normal” e nesse “novo normal” eu vejo menos liberdade, mais coação, mais polícia, mais abusos, vejo uma vida mais triste e claustrofóbica. Vejo e não gosto e não quero.
É verdade: o vírus vai continuar por aí. Se calhar a vacina diminui o risco, mas não o elimina. É provável – horror dos horrores – que vamos continuar a morrer de Covid. Como aliás morremos de inúmeras outras doenças, é a lei da vida. Será que somos capazes de nos habituar a isso ou, como as crianças super-protegidas que andamos a criar, no futuro também só vamos querer sair à rua se na rua todos andarem de máscara?
E a polícia, que se habituou a tomar simples recomendações como sendo leis para serem cumpridas à risca, e passou a aplicar multas com galhardia, será que vai voltar à civilidade que nitidamente dá sinais de estar a perder? Entretanto o sr. Magina já mandou saber se não houve abuso por parte dos agentes que não deixaram aquele senhor tomar a sua refeição dentro do carro em Torres Novas? Ou dos que levaram a idosa de Paço d’Arcos até ao multibanco para garantir que ela pagava logo ali a multa? Ou ainda está ocupado a responder ao juiz “negacionista”?
Mas é melhor parar que já estou a ir longe demais. Porventura a pisar o risco. E por isso a correr o risco de enfurecer os guardiães do templo que acham que não usar máscara é um delito comparável a conduzir a 200 km/h. Mas quanto a tais figuras, não duvidemos que Portugal sempre teve os “Dantas” que cada época mereceu.
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