As recomendações gerais, incluindo da Organização Mundial de Saúde, é que se a prioridade na vacinação contra o Covid-19 seja definida de acordo com a vulnerabilidade – risco de morte – e a exposição ao risco de ser contagiado. Neste quadro, baseado obviamente em dados e estudos, os grupos prioritários parecem óbvios e em linha com o que inicialmente o Governo definiu. Os trabalhadores na saúde e nos lares e os idosos, começando pelos mais velhos.

Mas tudo começou a ser virado do avesso, a partir de determinada altura, até chegarmos a este ponto de dar prioridade aos professores quando há sítios onde ainda não se chegou à vacinação das pessoas entre os 80 e 85 anos e quando se verifica que há, neste momento, em termos relativos, tantas pessoas vacinadas com 65-79 anos como com 25-49 anos – ou seja, 6% da população desse segmento, de acordo com dados da Direcção-Geral da Saúde atualizados a 21 de Março. Claro que a explicação pode estar na prioridade dada ao sector da Saúde, mas isso só reforça a necessidade de respeitarmos o critério da idade. Porque com os professores, a diferença corre o risco de se tornar significativa.

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Primeiro assistimos ao caos das sobras. Se alguns casos podem ser compreensíveis, face à ausência de orientações e experiência, como aconteceu com o INEM no Porto – o caso d o INEM em Lisboa nem tanto, ainda que só no Porto o director se tenha demitido. Outros, já são completamente incompreensíveis, como que aconteceu em com o presidente da Câmara de Reguengos que parece gozar de uma excepcional impunidade, agora com a chancela do próprio Ministério da Saúde quanto ao caso das mortes no lar de que se disse não responsável nessa fase, para passar a ser quando chegou a hora das vacinas.

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A impunidade é ainda validada pela própria ministra da Justiça quando diz na entrevista ao Público que “no caso das vacinas, não será muito fácil fazer a avaliação do ponto de vista criminal”. Francisca Van Dunen chega a ir mais longe, como que validando os comportamentos de tráfico de influência, ao afirmar: “O país é relativamente pequeno e em certos estratos toda a gente se conhece e tende-se a conceder vantagens a pessoas relativamente próximas.” Por incrível que pareça, esta é uma afirmação da ministra da Justiça de Portugal, sem uma preocupação de condenação desses comportamentos.

A seguir ao caos das sobras chegou a vacinação envergonhada da classe política. Podemos admitir que o Presidente da República – até pela sua idade – e o primeiro-ministro tivessem prioridade. Eventualmente até a ministra da Saúde e o ministro da Administração Interna, admitindo já uma elevada flexibilidade. Mas incluir depois vários ministros e uma lista de deputados sem que se perceba qual o critério, revela bem o país que somos, o país em que uns se sentem com mais direitos do que outros.

Não podiam esperar pela prioridade dada à idade? Qual é a vulnerabilidade e exposição que têm alguns deputados, incluindo o Presidente da Assembleia da República? Registe-se que a chanceler Angela Merkel em Fevereiro ainda não tinha sido vacinada – considera que consegue proteger-se melhor do que outras pessoas e afirma que os mais idosos e os mais vulneráveis devem ser vacinados primeiro, tal como os que não podem manter o distanciamento social devido ao seu trabalho, como os educadores de infância e os professores do primeiro ciclo que, na sua opinião, devem ser vacinados antes dela.

Agora assistimos à entrada de outro grupo prioritário, os dos docentes e não docentes e, termos gerais, se considerarmos  o que escreve a Direcção-Geral da saúde no “plano de vacinação dinâmico”, como lhe chama: “Profissionais dos estabelecimentos de educação e de ensino e respostas sociais de apoio à infância”. Ou seja, a alteração ao plano é bastante vaga – registe-se que não é divulgado um novo, mas sim actualizado em cima do documento antigo. Ao abranger profissionais dos estabelecimentos de educação e ensino podemos concluir que todos estão dentro desse universo, até as universidades.

Percebemos que não pela coragem que o ministro do Ensino Superior Manuel Heitor teve ao dizer que era contra essa prioridade, afirmando que “há muitas outras profissões que são tão aptas a ser vacinadas como o ensino superior” e que se deve seguir o plano como está, apelando à solidariedade com a população em geral.

Vamos então tentar colocar alguma racionalidade em tudo isto. Deviam os professores ser incluídos, nesta fase de elevado racionamento das vacinas e ainda sem as pessoas com mais de 80 anos totalmente vacinadas? A tentação de dizer, claro que não, é enorme.

Pensando um pouco, podemos admitir que os profissionais da educação de infância e do primeiro ciclo, assim como os que estão na educação especial, pudessem entrar na lista de prioridades. É difícil e até não é aconselhável manter o distanciamento em relação às crianças e se queremos proteger também a sua saúde mental, podem existir razões para vacinar esses, e apenas esses, profissionais de ensino. Todos os outros devem fazer parte da lista geral de prioridades. Mas, aparentemente, não é isso que está planeado. O plano é ir vacinando à medida que os diversos graus de ensino forem desconfinando.

Ou seja, a prioridade dada aos professores só tem razão de ser – mesmo com algum grau de subjectividade – pelo conforto que é devido às crianças. Assim sendo, apenas o pré-escolar e o primeiro ciclo devem ser colocados na lista de prioridades. Tudo o mais é ceder a pressões,  pode ser interpretado como tentar conquistar eleitoralmente os professores.

E é triste que os professores não se organizem para se oporem a esta prioridade, que fará com que na família sejam vacinados, com elevada probabilidade, antes dos avós. A vulnerabilidade dos avós é maior e é reduzida a exposição dos professores a risco de contágio, quer com as medidas que têm sido adoptadas nas escolas, como o uso de máscara, quer com as promessas de testes. E os professores mais velhos rapidamente serão vacinados pelo critério da idade se, obviamente, não se estiver sempre a integrar cada vez mais grupos como prioritários.

Repare-se que a inclusão dos professores na lista de prioridades contradiz não só o que o Governo sempre defendeu – que as escolas não eram locais de contágio – como cria o risco de se abrir uma caixa de Pandora. Se os professores são prioritários, porque não os funcionários do comércio alimentar? E os empregados dos restaurantes que fazem “take away”? E os que transportam a comida até à casa das pessoas? E os cabeleireiros? A lista ia crescendo, na lógica de “é só mais um”, até que o grupo que grita mais baixo, os idosos, acabasse a ficar em último.

Quando se conversa sobre desconfinamento, é vulgar ouvir algumas pessoas a defenderem que deve ser primeiro desconfinado aquilo que mais as afecta, revelando uma enorme incapacidade de avaliarem o interesse geral. O mesmo acontece com as vacinas. Cabe ao Estado, através do Governo, garantir o interesse geral. Embora se possa compreender que é preciso, nestes tempos difíceis, oferecer pequenas felicidades que garantam alguma estabilidade social, é preciso não esquecer os que não têm voz porque são demasiado velhos. Um Governo tem a obrigação de proteger os mais vulneráveis, os que não têm sindicatos nem capacidade de se manifestarem. Já basta o que se passou com os lares. Aos professores pedia-se um pouco mais de preocupação com o interesse geral, com a protecção dos avós. Vamos ver se a têm, se conseguem dizer não, não queremos ser vacinados. Até agora parece que não têm essa coragem.