Estima-se que 75% da população reclusa mundial volte a cometer crimes quando sair em liberdade.
Infelizmente, este indicador é estudado e publicado por pouco mais de 20 países em todo o mundo, mas, ainda que estimado, representa o insucesso dos modelos prisionais do século XXI. Imagine que 75% das crianças que frequentam a escola não aprendem a ler e a escrever, ou que 75% dos doentes que vão a um hospital são mal diagnosticados ou indevidamente tratados. Estou certo de que não iríamos querer utilizar esses serviços e exigiríamos melhorias radicais a esses mesmos sistemas. Contudo, admitimos que as nossas prisões – um sistema tão importante para o nosso país e para a civilização moderna quanto os sistemas de educação ou de saúde – tenham este tipo de resultados.
Fico sempre chocado quando oiço falar na Indústria 4.0, na Internet 5G e na Web 3.0, e depois me apercebo que, aplicando a mesma terminologia, as nossas prisões ainda estão na sua versão 1.0. De facto, os modelos prisionais modernos foram concebidos e desenhados há 250 anos atrás, por Cesare Beccaria, considerado o pai do Direito Penal moderno e da Justiça Criminal.
Não podemos querer resultados diferentes daqueles que temos vindo a alcançar se mantivermos o mesmo tipo de atividades, rotinas e isolamento a que as prisões têm estado sujeitas. O próprio staff das prisões (guardas prisionais, diretores, técnicos de reeducação, entre outros) está também sujeito a uma enorme pressão por parte do sistema, pela crónica falta de recursos e pelo próprio ambiente que se vive no sistema prisional.
Como afirma Foucault, a “prisão é a detestável solução de que não conseguimos abrir mão”. Não defendo que devamos abrir mão das prisões, mas defendo que estas devam ser escolas de vida, por oposição às escolas de crime como são normalmente conhecidas. Defendo sim que os resultados que nos são apresentados devem ser muito superiores. Só assim poderemos dar melhor proteção e segurança às nossas comunidades. Por cada pessoa que saia da prisão reinserida (que não volta a cometer crimes), estaremos a evitar o aparecimento de novas vítimas.
A prisão serve, antes de mais, para reinserir e reeducar. O tribunal puniu (privação de liberdade, só e apenas), a prisão deve reinserir. Esta é, pelo menos, a teoria. Só poderemos evoluir para uma sociedade mais segura se deixarmos de lado os nossos óculos de juízes e passarmos a usar óculos de humanidade, embora seja tantas vezes difícil porque o crime é um tema que suscita em nós sentimentos de vingança.
A solução passa então por, enquanto sociedade, evoluir para modelos prisionais que se aproximem da versão 2.0. Aproveitar esta “moda” de inovação e inovar também no tratamento penitenciário. As prisões 2.0 não têm necessariamente mais tecnologia, mas sim mais humanidade e proximidade. São modelos de maior proximidade, de pequena dimensão, integrados na comunidade (com as empresas, municípios e 3º setor a cooperar com o setor público) e com tratamento diferenciado, que repliquem o que seria a vida e as nossas rotinas em liberdade lá dentro. Temos visto este tipo de abordagem aparecer noutro tipo de problemáticas, como é o caso da saúde mental ou das comunidades terapêuticas para tratamento de pessoas com algum tipo de dependência.
Acredito que Portugal pode ser pioneiro e um exemplo na Europa. Podemos vir a liderar nos bons resultados que um sistema prisional pode ter, tornando assim o nosso país mais seguro e, claro, inovador.
Contudo, para começar, temos que mudar mentalidades. A começar nos magistrados e juízes e a acabar em todos nós. Só para se ter uma ideia, em Portugal uma pena de prisão dura em média 30 meses. Na Europa, a pena média é de 10 meses. Prende-se muito em Portugal, ao contrário do que o senso comum apregoa.
Em segundo lugar, temos que começar por alterar rotinas dentro das prisões, permitir que uma pessoa que está presa possa, por exemplo, trabalhar oito horas por dia, como trabalha a maioria dos cidadãos na vida ativa. Habitualmente este tipo de rotina só acontece em fases muito tardias da execução de pena (no chamado Regime Aberto no Exterior), nos casos em que acontece.
Não sendo Portugal um exemplo a nível mundial no que toca a estas matérias, temos que reconhecer que o espírito da nossa lei é bastante humanista. De facto, uma das finalidades da pena é a ressocialização dos indivíduos e, em última análise, a sua reinserção. Para além disso, muitas das pessoas que trabalham no sistema prisional são elas próprias exemplo de humanidade, como podemos perceber por esta entrevista dada recentemente pelo Diretor-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, Rómulo Augusto Mateus.
Apesar das dificuldades logísticas, de horários, espaços disponíveis e de pessoal técnico, temos que reconhecer o esforço que tem existido por parte do sistema prisional para o envolvimento comunitário. Destaco alguns projetos que mostram, na minha opinião, a direção para a qual devemos apontar, correndo o risco de estar a deixar de fora muitos outros em Portugal que poderiam aqui ser mencionados:
- Ópera na Prisão: Um projeto da SAMP Pousos, gerido por Paulo Lameiras e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian ao abrigo do programa Partis.
- Oficinas da Tecnidelta: A Delta Cafés tem 10 oficinas em 10 prisões onde os reclusos trabalham (e são remunerados de forma digna) na manutenção e arranjo de máquinas de café e de moinhos de café.
- Rugby com Partilha: Uma associação que leva o Rugby às prisões como forma de transmitir valores de respeito, resiliência, companheirismo e lealdade.
- Vinho Inclusus: Uma parceria entre o Estabelecimento Prisional de Leiria e a Adega Mãe para a produção de vinho nos terrenos desta prisão.
Projetos artísticos, desportivos, de desenvolvimento de competências sociais e de empregabilidade são alguns dos exemplos que aqui trouxe. Estes projetos podem ser referência para outros, podem ganhar escala, podem até ser replicados noutras prisões, idealmente de pequena dimensão e geridos de forma integrada e holística até à plena reinserção. Porque quer queiramos, quer não, estas pessoas voltarão à liberdade, mais tarde ou mais cedo. Eu prefiro que venham reinseridas, para que a minha filha possa viver numa sociedade mais segura.
Um caso em Portugal que me parece já um exemplo de intervenção integrada e holística é o Estabelecimento Prisional de Torres Novas que, com a sua equipa e com a comunidade local, tem desenvolvido um trabalho de excelência.
Com tudo isto não digo que devamos ser ingénuos e pensar que podemos mudar todas as pessoas. Mas podemos, e devemos, dar oportunidades a todos para mudarem de vida, e logo, melhorar o indicador de reincidência que apresentei no início.
Duarte Fonseca nasceu na cidade do Porto, onde se formou em Terapia Ocupacional e trabalhou durante 1 ano numa prisão. Trabalhou durante 4 anos na Beta-i como consultor de inovação e 3 anos na Associação Just a Change. É atualmente Diretor Executivo da APAC, uma associação que cofundou em 2015 e que tem como missão disseminar e implementar novas abordagens que transformem a vida de todos os reclusos, fornecendo-lhes as ferramentas e estímulos necessários à sua efetiva reinserção, promovendo uma sociedade mais coesa e segura, bem como uma maior eficiência para todo o sistema. Entrou para os Global Shapers em 2019.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, irão partilhar com os leitores a visão para o futuro nacional e global, com base na sua experiência pessoal e profissional. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.