Mais de 10 anos volvidos, e em pleno processo eleitoral, surge um relatório do Tribunal de Contas (TdC) que afirma que a privatização da ANA não cumpriu os seus objetivos.

Esta afirmação assenta em três premissas-base: 1) Que o Estado resolveu vender em contexto adverso (com urgência e em situação recessiva); 2) Que não foi maximizado o encaixe financeiro; 3) Que não existiu acompanhamento apropriado da gestão dos contratos de concessão do serviço público aeroportuário.

Aparentemente, o TdC esqueceu, ou decidiu esquecer, os tempos que se viviam em 2013. Também eu e, como acredito, a maioria dos portugueses, os preferia não ter vivido.

A Troika ‘aterrou’ em Portugal chamada pelo Governo Socialista de então. Não havia dinheiro. O Estado não conseguia cumprir com os seus compromissos – até os salários da função pública estavam em risco.

O dinheiro foi-nos emprestado: 78 mil milhões de euros. Com ele vinha um duro caderno de encargos, negociado pelo Partido Socialista. Nele incluíam-se cortes de despesa, privatizações e muitas reformas. Medidas calendarizadas, sujeitas a controlo sistemático, de cuja implementação dependia a disponibilização das famosas “tranches”.

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O eufemismo político chamou-lhe “ajustamento”, a crua verdade é que foram tempos de muitos sacrifícios, coragem e trabalho. Não esqueço esses tempos, os portugueses não esquecem as dificuldades e todo esforço a que tiveram de se impor. O TdC também não o devia ignorar.

A ANA foi concessionada porque assim o impunha a situação e a urgência nacional. E, em posição contrária ao que mais de 10 anos depois conclui o TdC, este foi um processo elogiado pela Comissão Europeia como aberto, concorrencial e transparente. Que, em pleno plano de resgate, consegue um valor de venda de 16 vezes o EBITDA da empresa.

Uma venda em que não houve queixa de nenhum dos 56 interessados, de nenhum dos 36 que solicitaram informação, de nenhum dos proponentes das 8 propostas iniciais ou das 4 finais. Uma venda em que a proposta vencedora foi 638 milhões de euros acima da do 2.º classificado, mais 26%.

O relatório também não considera os 280 milhões de euros que reverteram para a Câmara Municipal de Lisboa (CML), devido aos terrenos do aeroporto. Ressalve-se que o presidente de câmara da altura, António Costa, atual primeiro-ministro, acompanhou todo o processo e que esta verba serviu para o abate de dívida da CML que está dentro do perímetro do Estado. Nas mesmas condições, também 80 milhões de euros reverteram para a região Autónoma da Madeira. Ao esquecer-se destas duas verbas, o TdC está a ignorar uma parte importantíssima do encaixe.

São, por isso, no mínimo contestáveis as críticas ao tempo da venda e à maximização de encaixe financeiro. Contraditório que facilmente poderia ter sido feito caso o TdC tivesse chamado algum dos responsáveis políticos do Governo PSD/CDS que procedeu à privatização. Assim não aconteceu, ao contrário de alguns membros do Governo do Partido Socialista chamados a partilhar a sua visão.

A privatização da ANA, embora fosse uma obrigação da Troika, já o era nos diversos Programas de Estabilidade e Crescimento apresentados pelos Governos Socialistas e, antes disso, já era um objetivo desde meados dos anos 90, conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º 21/96, de 5 de Março, de um dos governos socialistas de Guterres.

Deste relatório, também os Governos do Partido Socialista dos últimos anos, dos quais Pedro Nuno Santos se tenta afastar, são alvo de crítica. Durante os 8 anos de governação socialista não houve eficaz acompanhamento do cumprimento da gestão dos contratos de concessão, apesar de todas as Comissões de Negociação e Acordos Escritos com a ANA. Tal como na TAP, em que a comissão de acompanhamento nunca foi criada, a história repete-se.

O Partido Socialista lida mal com mecanismos de controlo, tendo uma resistência dogmática à sua existência. Uma opção clara por um controlo público de proximidade, de preferência com seus nomeados nas administrações. Uma forma gestionária baseada na desconfiança e na falta de liberdade. Assente num controlo diário dos governantes, uma gestão ‘Big Brother’.

Este é um relatório muito sui generis, a começar pela sua aprovação, de 5 contra 4. Bem como pelas duras críticas expressas pelos Juízes conselheiros votados vencidos, como é exemplo a afirmação da Juíza Conselheira Maria da Conceição Vaz Antunes – que afirma que o relatório contém “a apreciação de decisões políticas que não cabe ao Tribunal apreciar”.

Em que o Relator do Tribunal de Contas, contra a opinião de outros juízes, optou por descontar, do valor global da privatização (três mil e oitenta milhões de euros), o valor dos terrenos do aeroporto, entregues à CML, num acordo com António Costa, talvez procurando diminuir o valor total, quando esse fluxo é neutral nas administrações públicas, porque foi dinheiro que saiu do Tesouro para a CML e na CML abateu dívida camarária.

Pelo contraditório da Parpública, de um presidente nomeado pelo Partido Socialista, soubemos que, antes deste relatório “de sexta-feira de Congresso”, havia um outro relato que era elogioso com o resultado da privatização e dava os objetivos como cumpridos. Estranhamente, esse relatório de 2016 desapareceu e foi agora substituído por este pedido ao TdC pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista, coincidentemente quando Pedro Nuno Santos era ministro da tutela.

Este é, pelo exposto, um relatório que não belisca em nada o PSD, mas cujo contraditório devia ter outro palco e outro tempo. Não sei porquê, mas assim não foi.

Tudo muito sui generis.