Há dez anos não havia muitos liberais em Portugal. Contavam-se pelos dedos de uma mão. Hoje em dia são às dezenas de milhares e até um partido liberal conta com 8 deputados no Parlamento. Onde estavam estes liberais? Foram convencidos, mudaram de opinião ou já eram liberais? A questão é relevante porque o fenómeno pode parecer estranho e também porque há muitas tendências dentro do liberalismo. Nem todos os liberais são de direita. Muitos dizem-se de esquerda, outros não são nem de esquerda nem de direita, pois entendem que a distinção não é essa, mas entre liberalismo e socialismo ou até entre liberalismo e conservadorismo.

A discussão pode parecer académica, mas não é. Tem implicações práticas e é importante porque vai condicionar o debate político nos próximos anos. Mais: pode alterar a orientação política de alguns partidos que poderão afirmar-se como liberais e não necessariamente socialistas ou sociais-democratas. O fenómeno está a ocorrer com o Livre e não me admiriaria se brevemente se alargasse ao PSD e até mesmo ao PS. Uma redefinição que terá implicações naturais no futuro da IL.

Edmund Fawcett é um jornalista britânico que trabalhou trinta anos na Economist, para quem acompanhou o processo de democratização de Portugal, é tio de Boris Johnson e escreveu dois livros bastante recomendáveis. Um chama-se ‘Conservadorismo – A Luta por Uma Tradição‘, publicado em português pela Edições 70, e um outro ‘Liberalism – The Life of an Idea‘, cuja tradução e publicação em Portugal recomendo não só pela qualidade da obra, mas também pela sua relevância. Neste, Fawcett conta-nos a evolução do liberalismo desde o seu surgimento após as guerras napoleónicas como uma “prática continuada da política conduzida por uma série de objectivos e ideais distintos”. Não se tratava de uma corrente filosófica, de uma ideologia devidamente estruturada, convenientemente organizada, mas de um conjunto de ideais, objectivos, motivações e práticas que, a partir do Congresso de Viena em 1815, orientaram políticos e governos na melhor forma de evitarem e resolverem os conflitos entre os Estados, controlarem o poder, fosse este político, económico ou social, garantirem o progresso para que as gerações seguintes vivessem melhor que as anteriores e que se respeitasse o direito e a possibilidade de cada pessoa concretizar os seus sonhos, utilizar a vida para se completar nas suas diversas dimensões.

Foi esta difusão de objectivos, imprecisão na forma e nos meios para os alcançar que permitiu a adaptação do liberalismo aos novos desafios que surgiram nas décadas decorridas de então para cá. Desde 1815 até à actualidade, o liberalismo estendeu o sufrágio até o voto se tornar universal, venceu o fascismo e o nazismo e, mais tarde o comunismo. Foram políticos liberais como os britânicos William Gladstone e Joseph Chamberlain e os vários governantes da III República Francesa que levaram por diante as primeiras políticas de cariz social. Homens como Eugen Richter que se opuseram às guerras de Bismarck (que também impulsionou o Estado social), avisou para os desequilíbrios que uma Alemanha militarista originava na Europa e falou a favor do comércio livre sem quaisquer restrições, do controlo orçamental e das liberdades cívicas. Infelizmente, apesar de ter estado do lado certo da história, Richter não tinha a flexibilidade política suficiente para originar maiorias. Mas deixou herdeiros: primeiro, Gustav Stresemann e depois a Alemanha que surgiria após 1945. Foram políticos, economistas, pensadores e filósofos liberais que discutiram o valor da liberdade individual, a sua protecção, o que esta pressupunha para que existisse qualidade de vida, o papel que cabia ao Estado como garante no acesso à saúde, à educação, à habitação e ao bem-estar. O papel no Estado na protecção dos direitos civis das mulheres e das minorias, fossem estas étnicas, religiosas ou relativas à orientação sexual das pessoas.

Esta evolução não foi feita sem críticas de parte a parte. Houve lugar a desentendimentos, assistiram-se a desacordos, fizeram-se e desfizeram-se partidos políticos porque, no meio desta evolução, o liberalismo, como foi pensado pelos políticos e governantes do início do século XIX, é diferente dos dias de hoje. Há valores e pontos em comum, mas o papel do Estado tornou-se mais complexo e diversificado e a “prática continuada da política conduzida por uma série de objectivos e ideais distintos” adaptou-se a essa nova realidade.

O liberalismo atingiu uma amplitude tal que governantes como Margaret Thatcher e François Miterrand puseram em prática políticas liberais. Uma extensão de tal ordem que podemos dizer que vários membros do PSD e do próprio PS são liberais. Uns mais liberais conservadores como Thatcher, outros mais liberais sociais como Mitterrand ou Willy Brandt, duas figuras que Mário Soares tanto admirava.

Por muito que custe aceitá-lo a política é uma luta por mercados eleitorais onde cada partido troca o seu programa por votos e lugares no Parlamento e no Governo. Nestes combates eleitorais, a marca adquire uma importância desmesurada. Há 40 anos quase todos os partidos se diziam marxistas sob pena de perderem votos. Há 30 ser socialista dava prestígio e não era um embaraço; no mínimo era-se social-democrata. Actualmente já não é assim. Há dias surpreendi-me ao ouvir um deputado do PS dizer que sempre fora social-democrata. Estive quase para lhe dizer que daqui a uns anos terá sido sempre liberal social. A moda não é só na roupa. As marcas e os símbolos não são só importantes no vestuário, na restauração, na música, nos livros e demais artes. São também determinantes na forma como se ganham votos, lugares e governos.

Assim, não nos admiremos se daqui a uns anos alguns dos actuais políticos de esquerda se digam liberais. Nessa altura, a IL, actualmente o único partido liberal português, terá de se redefinir. Mas isso será tema para outra crónica.

P.S.: para discutir e conversar sobre este tema tive a iniciativa de convidar os Professores Manuel Villaverde Cabral e André Azevedo Alves para, no próximo dia 9 de Novembro, a partir das 18h30, no Grémio Literário, em Lisboa, exporem a sua análise bem como responderem às questões que se possam colocar. O objectivo é conseguirmos uma conversa amena que nos ajude o saber como foi o passado e, a partir daí, imaginarmos aquilo com que podemos nos deparar no futuro.      

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