À medida que os déspotas prolongam os seus mandatos até que “Deus os chame”, os seus discursos tornam-se cada vez mais delirantes, distantes da realidade, mas incentivados por uma corte deles dependente. Foi assim com Lenine, com Salazar e é cada vez mais assim com o presidente russo, Vladimir Putin.

No dia 20 de Maio, numa reunião do comité organizativo “Vitória”, uma das muitas instituições criadas para despertar o “patrioteirismo” no país, Putin prometeu “partir os dentes a quem quiser tirar à dentada a Sibéria da Rússia”.

Os analistas e comentadores políticos começaram à procura de que político ocidental poderia ter pronunciado tal frase e concluíram que nenhum. O Presidente Putin baseou-se numa notícia falsa, que já foi várias vezes desmentida.

A frase citada é atribuída a Madeleine Albright, a primeira mulher a ocupar nos Estados Unidos o cargo de secretária de Estado (1997-2001), mas, na realidade, não existe qualquer documento que confirme essa declaração. Além disso, a política norte-americana, que trabalhou com o Presidente Bill Clinton, já veio desmentir várias vezes tal afirmação.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas qual a origem dessa “ameaça” à integridade territorial” da enorme Rússia?

Ela poderá ter surgido no seio de páginas russófonas da internet alemã, mas foi “oficializada” em 2005, numa entrevista concedida ao jornal Argumenty i fakti por Nikita Mikhalkov, conhecido realizador de cinema e político chauvinista e “patrioteiro”. “Ou a frase de Madeleine Albright, antiga secretária de Estado dos EUA: “Haverá justiça se uma terra como a Sibéria for propriedade de um só país?” – perguntou ele.

Este pensamento voltou a ser citado numa delirante entrevista de Boris Ratnikov, general do Serviço Federal da Guarda, órgão que responde pela segurança dos mais altos dirigentes russos, publicada na Rossiyskay Gazeta, órgão oficial do governo russo, a 22 de Dezembro de 2006.

O título da entrevista “Tchekistas [agentes secretos russos] scanaram os pensamentos de Madeleine Albright” fala por si. Mas vale a pena citar um parágrafo para mostrar o quão avançada vai a espionagem russa, mesmo que comparada com os filmes medíocres de Hollywood sobre o mesmo tema: “Encontrámos nos pensamentos da senhora Albright um ódio patológico para com os eslavos. Ela estava também indignada com o facto de a Rússia possuir as maiores reservas de minérios no mundo. Segundo ela, no futuro, as reservas russas deveriam ser geridas não por um país, mas por toda a humanidade, claro que sob o controlo dos Estados Unidos.”

Em 2007, numa daquelas enfadonhas “conversas com o povo” através da televisão, um físico perguntou a Putin o que pensava dessa “frase de Albright” e ele respondeu que não a tinha ouvido, mas que, em geral, essas ideias vagueiam nas cabeças de alguns políticos.

Contudo, sete anos depois, Putin já afirmava com maior convicção, numa conferência de imprensa: “Mas nós já quase ouvimos frequentemente de personalidades oficiais que é injusto que a Sibéria, com as suas imensuráveis riquezas, pertença à Rússia.”

Há alguns dias atrás, a convicção de Putin já era tanta, que prometeu “partir dentes” a quem ousar dar uma dentada na Sibéria. Aliás, essa foi apenas uma das partes mais desafiadoras e aguerridas de um discurso que é mais um sinal alarmante para os vizinhos da Rússia e para todo o mundo. Ele afirmou, a determinada altura: “A União Soviética não era mais do que a Rússia histórica, apenas tinha outro nome… do ponto de vista geopolítico, era a Rússia histórica.”

Depois de afirmações deste tipo, não me perguntem porque é que os vizinhos da Rússia duvidam das “intenções e propostas de paz” vindas do Kremlin e procuram refúgio em instituições como a NATO. E isto diz respeito às 14 das 15 repúblicas que faziam parte da URSS.

É curioso assinalar que continuam a ser publicados e a circular na China mapas onde partes significativas da Sibéria e do Extremo Oriente aparecem representadas como territórios chineses perdidos, mas Putin não está preocupado com tais “insignificâncias”. Talvez porque, como se considera no direito de desenhar linhas vermelhas onde desejar, Pequim receie atravessar alguma delas.

Não sei se a agressividade de Vladimir Putin está ligada aos laços estreitos que mantém com personagens como o actor Steven Segal, ou ao facto de ele praticar karaté, mas Gleb Pavlovskyi, antigo conselheiro do presidente russo, considera que o problema reside no seguinte: “É preciso ter em conta o que se passa dentro do crânio, que baratas combatem entre si na cabeça de Vladimir Putin, que já não é jovem.”

Não restam dúvidas de que Putin se assemelha cada vez mais a Lenine e Salazar nos últimos anos de vida e não se pode excluir a possibilidade de vir a receber dos seus conselheiros jornais e programas televisivos especialmente preparados para agradar ao “grande líder”.

Pode também existir outra explicação para declarações tão aguerridas no futuro próximo. A corte de Putin prepara-se para a cimeira com o presidente norte-americano, marcada para breve. O senhor do Kremlin pretende apresentar-se como o chefe de uma superpotência com interesses globais, que só conversa com os Estados Unidos e em pé de igualdade.

Resta saber se a equipa de Joe Biden está disposta a ouvir estas e outras bravatas dos dirigentes russos.

Pavlovskyi receia que estamos simplesmente perante a destruição da própria política externa russa. “Como compreendo, o ídolo do senhor Putin, Estaline, não falava assim. Semelhantes declarações destroem a própria diplomacia, incluindo a de Putin, que já é bastante fraca.” Mas o ditador põe a diplomacia atrás da capacidade militar, que ele considera ser a garantia de que pode partir dentes aos mais ousados.

A política tresloucada do “czar russo” reflecte-se também no campo interno. A seu mando, o parlamento “fabrica” leis que visam impedir que qualquer oposição extra-parlamentar possa participar nas eleições legislativas de Outubro, os opositores, sob os pretextos mais ridículos, são julgados e condenados a pesadas penas de prisão, os órgãos de informação da oposição são rotulados de “agentes estrangeiros”, etc.

São sinais de que o Kremlin não está muito confiante no seu futuro e tenta prevenir qualquer onda de protesto.