«Lua». Gota de cor esquecida numa vidraça. Mancha de luz pousada no mar e no deserto. Imperfeita esfera rutilante ou pardacenta. Sinistra presença que cativa e confunde. Corpo celeste que atrai e corrói. Sinal doído que desvenda e esconde.
Guardiã da cidade, que se ergue até ao céu. Sentinela da floresta, que se alastra na montanha. Arca de feitiços, fantasias. Baú de segredos e mistérios. Solitária testemunha do amanhã. De atalaia, ao sol-pôr, decide o destino, inventa o passado. Na penumbra, alguém a contempla, alguém pressagia, alguém vaticina, alguém desespera.
Outrora, foi luna, a brilhante. Na raiz latina da palavra, um enigma desfeito. A partícula «lu(c)» — nascida do indo-europeu *leuk- (ser luminoso) — une luna às famílias de lumen, lustrum e lux. Em cada uma delas, sinais de esplendor, marcas de chama.
O horizonte clareia quando ela se converte em plena luna, como Cícero lhe chamou no Tratado da República. O passar dos dias encobre o seu lado coruscante, e apenas lhe vemos a ambígua forma, vestígio do que foi, do que será. Quebrantada, encolhe-se num movimento decrescente e dissolve-se na escuridão. Tímida, mantém-se alerta, mas foge veladamente aos olhos da humanidade.
Relógio milenar, a Lua conta os passos, os segundos. Com precisão, mede a lonjura do caminho. Por metonímia, é cada um dos meses que percorremos. O seu tempo é o nosso.
Ao Sol, rouba a luz, energia da eternidade, para iluminar a Terra. E assim lentamente se renova, como se não tivesse princípio nem fim, segurando nos braços o milagre da existência. Dissimulada, influencia chuvas e marés. Silenciosa, desafia a finitude, revelando-se imortal.
A Lua abre-se ao mundo como livro de crenças. No Egipto Antigo, era associada a Ísis, mãe dos deuses, irmã e mulher de Osíris. Além de simbolizar a Natureza e a fertilidade, Ísis presidia à metamorfose das coisas e dos seres, triunfando sobre os poderes da noite. O seu culto não se cingiu a Alexandria, tendo-se posteriormente disseminado pela civilização greco-romana.
Na mitologia grega, o corpo lunar era personificado pela inexorável Ártemis, nascida em Delos, a mais pequena das ilhas Cíclades, situadas no mar Egeu. Empunhando arco e flechas, a selvagem deusa da caça — irmã gémea de Apolo, que representava o Sol — deambulava nas montanhas, como a Lua passeia no cosmo, punindo quem a ofendia e concedendo a imortalidade aos apaniguados. Ao contrário de Afrodite, deusa do amor e da beleza, Ártemis, perpetuamente virgem e jovem, não cedia à volúpia. Porém, como aquela, também protegia a fecundidade.
Para os Incas, a Lua era esposa do Sol. Os Maias viam nela o negativo contraponto desta estrela. Os Astecas consideravam-na filha de Tlacoc, deus das chuvas.
No judaísmo, a Lua simboliza o povo de Israel, cuja histórica itinerância é comparada aos seus ciclos e modificações. No hinduísmo, expressa a vida dos antepassados. No Islão, existem dois calendários: o solar e o lunar. O primeiro liga-se à agricultura; o segundo, à religião. A Lua — em árabe, Qamar — exprime o poder de Alá, seu criador.
Observada desde tempos ancestrais, a Lua permanece indefinível. Em 1609, tentando decifrar os seus desígnios, Galileu Galilei passou a contemplá-la por uma luneta — a palavra «luneta» pertence inclusive à dinastia de luna, provindo do termo francês lunette, diminutivo de lune —, inovador instrumento de que tivera conhecimento, e cuja invenção, acreditam muitos historiadores, ocorrera, pouco antes, nos Países Baixos, onde Hans Lipperhey foi o primeiro a requerer a patente, que não lhe foi concedida. Outros reivindicaram a proeza, como o filósofo e alquimista napolitano Giovanni Battista Della Porta. Há até quem defenda, como o cientista Domenico Argentieri, ter Leonardo da Vinci desenvolvido, no dealbar do século XVI, um sistema com duas lentes, para os mesmos fins.
Nas vestes de artesão futurista, e sem reclamar a titularidade do invento, Galileu criou as suas próprias lunetas, que apresentaria, pela primeira vez, no campanário da Basílica de São Marcos, perante um conjunto de insignes venezianos. Aperfeiçoando o modelo primitivo, o preeminente físico e astrónomo dotou os tubos ópticos, feitos de chumbo, de uma objectiva convergente (plano-convexa) — parcialmente tapada por um diafragma de cartão, que os telescópios neerlandeses não continham — e uma ocular divergente (plano-côncava). Conseguiu, dessa forma, melhorar a ampliação e a nitidez da imagem. Depois de várias tentativas, construiu uma luneta que lhe possibilitava ver as coisas cerca de trinta vezes mais próximas.
Explorando o infinito e trespassando mortalmente leis entranhadas na própria realidade, Galileu admirou demoradamente a Lua, como se a tacteasse e sentisse, como se meticulosamente a examinasse — dúctil cobaia estendida e dissecada numa mesa repleta de mapas, desenhos, utopias. Nesse horizonte, avistou planícies escuras e sem água. Entre jogos de luzes e sombras, descortinou crateras, vales e montanhas. Confirmava-se assim a tese de Plutarco, que adivinhara a irregularidade do chão lunar em Sobre a Face Visível no Orbe da Lua (obra traduzida por Bernardo Mota e editada pelo Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra), diálogo entre amigos, moderado e narrado por Lâmprias, seu irmão, em que se discutem a origem e a natureza do corpo selénico: luz, manchas, posição no firmamento.
Galileu divisou ainda nebulosas e estrelas fixas pontilhando a imensidão sideral. Na órbita de Júpiter, descobriu quatro novas luas. Baptizou-as de «Estrelas Mediceias», em honra à família que imperava na corte florentina e que, ao longo dos séculos, facilitou, pelo mecenato, a criação de uma miríade de obras eternas: de Botticelli a Dante, de Donatello a Miguel Ângelo, de Petrarca a Verrocchio. O nome não perdurou. O astrónomo alemão Simon Marius, célebre rival de Galileu, chamar-lhes-ia Calisto, Europa, Ganimedes e Io, figuras da antiguidade helénica de quem Zeus — Júpiter, na tradição romana — se enamorara um dia. Ainda hoje se denominam assim.
No opúsculo O Mensageiro das Estrelas (entre nós, a obra foi traduzida por Henrique Leitão e editada pela Fundação Calouste Gulbenkian), publicado em Março de 1610, na cidade de Veneza, dedicado a Cosme II de Médicis[1], quarto Grão-Duque da Toscana, Galileu cumpriu a missão e entregou a mensagem, o tesouro. Aderindo definitivamente ao heliocentrismo coperniciano, o polímata narrou as subtilezas da experiência e complementou as descrições com gravuras lunares, permitindo-nos segurar o telescópio e apreciar, a seu lado, a magnificência da Via Láctea. Estava confiada ao mundo a inelutável prova de que o Universo não cabe numa folha de papel.
Com o gentil desvelo do arqueiro que, em missão, protege o seu rei, a Lua escolta a Terra. A palavra «satélite» acolhe a imagem. O étimo latino satelles, provavelmente com raízes etruscas, exprime o significado de companheiro, defensor, guarda de corpo, guarda de príncipe, servidor, soldado. Em perpétua vigília, o corpo lunar, glorioso, abriga e inspira. Talvez por isso se ligue tão profundamente à arte e arrebate escultores, pintores, músicos, poetas, como se o encontro cósmico lhes perdoasse a húbris ou trouxesse a calma redentora.
Subjugada ao infindo poder da imaginação, a Lua transforma-se a cada olhar. Em Lune rousse au Cap d’Antibes, Chagall pintou-a, enrubescida, num silente entardecer da Riviera Francesa, onde Fitzgerald, Matisse e Picasso também se alentaram com a mistura de aromas e matizes provençais. Richard Rodgers e Lorenz Hartz descobriram-na coberta num azul que, na voz de Billie Holiday, jamais desbotará. Rosada Lua evolveu no céu de Nick Drake, diluindo a solidão que anuviava as suas horas. Vinicius de Moraes viu-a esplendorosamente branca, assomando a uma estrada da mesma cor. Joni Mitchell continua a asseverar, em Moon at the Window, não a terem levado os salteadores. E a bicicleta mágica de Spielberg ainda irradia sonhos, voando pela incandescência perlada do orbe lunar.
Suspensa por fios invisíveis num teatro ou simplesmente gravada numa frase clandestina, de ninguém se esquecerá a Lua. Afogueada ou oculta, não abandonará o velho cabalista que a espia de madrugada nem os nocturnos errantes que nunca regressam a casa.
Na contraluz se cumprirá a profecia. Fúlgida ou dessangrada, a Lua conduz-nos à alva e só adormece, serena, quando a viagem chega ao fim.
[1] Galileu foi tutor de Cosme II de Médicis. Mais tarde, este defenderia o cientista das acusações de heresia.