Há uns tempos, a filha de um amigo meu pediu-lhe para ver no Google se Deus existe. Reconheço que, por momentos, me fascinou a perspetiva de imaginar a Google a ter argumentos inquestionáveis para atestar a existência de Deus. Como se um motor de busca nos trouxesse tantos cruzamentos no conhecimento que até as verdades mais inquestionáveis se “desmoronam”, e a sua aura, fascinante, de mistério se tornasse palpável, fácil de entender e acessível. Uma espécie de “brincadeira de crianças”.

Ainda mal estava refeito dessa surpresa, tinha o meu filho mais pequenino a falar, repetidamente, com o meu relógio. Assim: “Hey, Siri!… Qual é a idade dos super-heróis?…”. O relógio “ouvia-o”. Dava ares de não ser tão fulgurante assim, a ponto de parecer precisar de algum tempo para “pensar”. E, consoante as vezes, respondia, com um sotaque de português do Brasil, qualquer coisa de razoavelmente banal sobre um super herói. Nunca sobre quantos anos eles teriam. O que reforça a ideia de que nunca se pergunta a idade a um super-herói… Mesmo que isso se faça junto de uma assistente virtual. (Não fosse ele um relógio, diverte-me só de o imaginar, enfadonho, a barafustar contra o diabo do miúdo que não se cala. Ou que não se cansa de pôr perguntas parvas. À escala da Google. Pois….)

É claro que Deus estará muitos degraus acima dos super-heróis. Mas vamos deixá-lo, por agora, em paz. Até porque, à escala do pensamento simbólico, Deus estará ele próprio muito mais habilitado para fazer de Google do que a Google para fazer de Deus. Será, vendo bem, uma usurpação de funções. Embora Deus esteja ao nível d’ A Entidade das entidades reguladoras. E não conste que necessite, sequer, de reclamar junto de alguém ainda mais omnisciente, alegando estar a ser vítima de publicidade enganosa. Até porque não há!

Fiquemo-nos, então, sobre a idade dos super-heróis. Na verdade, sempre me fascinou que os heróis não tenham casa, não tenham pais, não precisem de dormir, não tenham dias maus… e não tenham idade. Sejam eles o Astérix ou o Tintim, por exemplo, os anos não passam por eles. E, mesmo que haja alguém que, só para contrariar, nos recorde (como se fosse uma efeméride) os anos que terão no universo da banda desenhada, eles não envelhecem. Não há uma gelha. Uma ruga. Uma olheira. Uma nódoa na sua imagem, que seja. O que, convenhamos, não sendo eles influencers de clínicas de estética, teria tudo para pôr o nosso amor próprio a um canto.

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O que é que distingue um herói de um super-herói? Para além da forma como, eles também, dão ares de estar muito bem conservados, a capacidade — única! — de terem super-poderes. Mas, lá está, continuam a ser solitários. Pouco dados à paixão, por exemplo. Com um espírito de missão de enaltecer, quando se trata de lutarem contra os maus; é verdade. Mas a não terem idade. (Como se pode não ter idade e ter uma história? — é nisto que a Google está para os super-heróis como um amigo meu que vendia pombos-correio, e gostava particularmente de um deles, que já tinha vendido quatro vezes. Isto é, a dimensão humana é esperteza; sim. Mas a capacidade de pensar começa quando reconhecemos tudo aquilo que nos falta para sabermos tudo. O que, mesmo à escala das métricas das redes sociais, faz alguma diferença.)

E é aqui que eu acho os super-heróis uma influência fantástica para as crianças. Em primeiro lugar, porque as ajuda a perceber que, por maior que seja algum do seu egocentrismo, são pequeninas. Em segundo lugar, por mais que não voemos e não façamos coisas mirabolantes, como levantar automóveis com a força de um bíceps, porque — nos dias bons — equiparam as nossas competências de pais à categoria das dos “heróis”. E, finalmente, porque embaraçam a Siri e o Google. Que não só não têm a humildade de dizer: “Não sei”; nem o contorcionismo de disfarçarem o engasganço com uma habilidade do género: “Ora aí está uma boa pergunta!…”; como não têm a astúcia dos sábios quando, perante qualquer coisa sobre a qual não tenham ainda pensado, querem saber, sobretudo, quais são os nossos pontos de vista.

Vendo bem, a necessidade humana de termos heróis e os motores de busca não casam na perfeição. Ou, melhor, o conhecimento, como necessidade humana, nem sempre reconhece a capacidade simbólica e as histórias como aquilo que distancia os conhecimentos dos motores de busca do que nos torna únicos, inimitáveis e insubstituíveis. A ponto de duas crianças — uma de cinco, outra de doze — os encalacrarem. Isto é, à escala da banda desenhada, somos mais super-heróis do que possa parecer. Não porque a Google faça parte dos maus. Mas porque lhe falta tudo para ser Deus.

Chegados aqui, era altura de falarmos nas candidaturas ao ensino superior. (Tudo a ver; portanto…)  Com 31 cursos a exigirem uma média superior a 18 valores para se poder entrar. E com o reitor da Universidade de Lisboa a afirmar: “Tenho vergonha que haja cursos em que um estudante com 18 valores não entra”. Ora, já lá vai o tempo em que, a propósito de reportagens televisivas em direto, se ouvia e se ouvia falar da “multidão anónima”, em contraponto com as “personalidades oficiais”.

Não querendo contrariar a ideia de uma personalidade “oficial” como algo de bom e de verdadeiro, é claro que fazermos parte de uma multidão anónima nos equipara a um grão insignificante de poeira cósmica, algures entre Krypton e a Terra, que não se pode transformar num projeto de carreira a que se aspire. Resta o “ser alguém”. Que muitos dos pais que faziam parte da “multidão anónima” queriam para os seus filhos. Mas “ser alguém”, sendo melhor do que fazer de grão cósmico mais ou menos indiferenciado, não será, ainda, um projeto que se abrace (como, agora, se diz).

Resta o “ser diferente”. Que a maioria dos adolescente mais reclama. Diferente no sentido de singular, único e inimitável. E é aqui que eu fico numa aflição. É claro que não quero nada que se cresça para se ser “multidão anónima”. Mas não será que não andaremos todos a fazer dos nossos filhos mais “super-heróis” do que eles serão? E não será que, depois, a argúcia que eles têm aos 5 ou aos 12 é tão transformada em “produto normalizado” que, apesar de todos os 18 que conquistem, eles se arriscam a ser mais “multidão anónima” do que a serem “diferentes”, como tanto sonham?

Onde ficam, para além dos seus “super-poderes”, a capacidade de terem idade e uma história? Onde está a sua argúcia para contarem histórias? E para fantasiarem e, assim, verem mais longe ? E para encalacrarem aqueles que lhes vendem o futuro como um lugar que substitui Deus por motores de busca e assistentes virtuais que, feitas as contas, lhes dá a entender que são mais crescidos (e mais “poderosos”) do que eles imaginam, quando lhes faz tanta falta serem mais humildes e serem mais “pequeninos”? Não andaremos nós a desbaratar a utilidade dos super-heróis no seu crescimento e, depois, quando lhes damos força para fazerem como a Google em relação a Deus, não os levaremos ao engano, dando-lhes a entender a universidade como uma fábrica de super-heróis, quando ela — mesmo quando reconhece, com vergonha, a forma como os trata — pouco faz para lutar contra a maldade, em nome do bem?

A ironia é que aqueles que são hoje “super-heróis”, depois da entrada no ensino superior, tão depressa serão “só” heróis. Como só “alguém”. E, no outro extremo, muitos dos outros que são “multidão anónima” transfiguram-se e tornam-se “heróis”. Ou, mesmo, “super-heróis”. A vida encarrega-se de escrever direito por linhas tortas. E de colocar bom senso onde, por vezes, ele se escapa. Mas, sendo assim, porque é que, passivamente, vamos dando mais crédito à Google do que à ideia de Deus?