É um privilégio ter artigos publicados nestas páginas (digitais). A generosidade da equipa do Observador é edificante, ao dar-me a possibilidade de aqui apresentar temas que me preocupam como investigador na área da ciência política e das relações internacionais. Porém, esta será a primeira vez que tenho de justificar o porquê de um artigo de opinião. Como se percebe facilmente pelas minhas crónicas, o futuro da democracia (no globo), e em especial nos Estados Unidos, é algo que me cativa e motiva.

A razão pelo interesse nos USA começou cedo muito porque, e como dizem os Xutos e Pontapés, ‘a América [sempre esteve] mesmo ali ao lado’. Também por haver um sentimento de imensa gratidão para com esse país, que me acolheu de uma forma excecional para estudar numa das suas melhores universidades, oferecendo-me esses estudos, e dando-me a oportunidade de explorar todo o meu potencial como investigador. Isso não implica que não veja os defeitos da nação. De facto, aposto que não há nenhum leitor do Observador que não concorde com essa condição à partida. Apesar disso, os USA sempre foram, desde que me interesso por política, o exemplo de que a democracia liberal é melhor forma de governação, como proposta pelos seus pais fundadores que se inspiraram em pensadores europeus da era do Iluminismo.

Na terça-feira, dia 1 de agosto, o grande júri nomeado para avaliar a investigação do Procurador-Especial Jack Smith ao ataque ao Capitólio de 6 de janeiro de 2021 votou favoravelmente que o antigo presidente dos Estados Unidos, Donald John Trump, fosse indiciado por quatro crimes federais: 18 U.S.C. § 371 Conspiração para Defraudar os Estados Unidos, 18 U.S.C. § 1512(k) Conspiração para Obstruir um Procedimento Oficial, 18 U.S.C. §§ 1512(c)(2),2 Obstrução de, e Tentativa de Obstruir um Procedimento Oficial, e 18 U.S.C. § Conspiração contra Direitos. A interpretação destas acusações pode ficar para outra oportunidade, pois ainda agora o processo está a iniciar-se e faltará muito tempo para o julgamento.

A leitura do documento United States of America v. Donald Trump, caso 1:23-cr-0025-TSC, faz perceber o quão devastadoras as acusações são e qual o peso das provas. As fontes citadas no documento tinham conhecimento direto das maquinações, e a forma como as quatro acusações se suportam umas às outras faz acreditar que será muito difícil que um júri de pares não reconheça a culpa, estabelecida para além de qualquer dúvida razoável. No entanto, os acusados são presumidos inocentes até lá.

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No entanto, existem duas passagens no documento que, a serem comprovadas em tribunal, mostram o quão os Estados Unidos estiveram à beira de um cenário impensável, sendo preciso recuar até à Guerra de Secessão de 1861 a 1865 para haver uma comparação. No parágrafo 81 lê-se que “Na tarde de 3 de janeiro, o Co-Conspirador 4 falou com o Vice Conselheiro da Casa Branca [que é responsável pelo aconselhamento jurídico à posição de Presidente]. No mês anterior, o Vice Conselheiro havia informado o acusado [Trump] que ‘não há um mundo, não há uma opção em que você não saia da Casa Branca no 20 de janeiro’. O Vice Conselheiro tentou dissuadir o Co-Conspirador 4 de assumir o cargo de Procurador-Geral interino da República, uma vez que não houvera fraude que tivesse sido determinante no resultado na eleição, e que se o acusado se mantivesse no cargo, haveria ‘tumultos em todas as grandes cidades do país dos Estados Unidos’”. Esta preocupação grassava porque Trump, e o então funcionário do Departamento de Justiça Jeffrey Clark, queriam aplicar o esquema fraudulento de ter Clark como Procurador-Geral interino, a dizer a um conjunto de estados que o governo federal encontrara ‘irregularidades’ nas eleições, o que era falso, e como tal não deviam certificar os seus resultados eleitorais. Ao ser confrontado com a ideia de que uma usurpação ilegal da vontade do povo podia fazer com que este saísse para a rua, Clark respondeu, “Bem, [Vice Conselheiro da Casa Branca], é por isso que há a Lei de Insurreição“. Uma lei que permite ao Presidente mobilizar o exército e a Guarda Nacional para suprimir protestos. Americanos, com armas, e o poder do Estado para aplicar violência, a reprimir outros americanos do usufruto das liberdades providenciadas pela Constituição.

Nos parágrafos 94 e 95, por sua vez, pode ler-se que (Pg94) “Também no 4 de janeiro, quando o Co-Conspirador 2 reconheceu a um dos conselheiros do acusado [Trump] que nenhum tribunal validaria a sua proposta [que o Vice-Presidente Pence rejeitasse os votos eleitorais de um conjunto de estados, direito que não lhe é atribuído na Constituição], o conselheiro disse ao Co-Conspirador 2 [o então advogado do Presidente, John Eastman, o autor do ‘memorando’ com o plano para Mike Pence anular a eleição] ‘[Você] vai causar tumultos nas ruas.’ O Co-Conspirador 2 respondeu que tinha havido momentos na história da nação onde a violência tinha sido necessária para proteger a república”. Já no Pg95, “Na manhã de 5 de janeiro, sob a direção do acusado, o Chefe de Gabinete, e o Conselheiro jurídico do Vice-Presidente Pence, reuniram-se novamente com o Co-Conspirador 2. O Co-Conspirador 2 defendia agora que o Vice-Presidente fizesse o que o acusado lhe havia dito que preferia [que fosse feito] no dia anterior: rejeitar unilateralmente os eleitores dos estados em discussão. Durante esta reunião, o Co-Conspirador 2 reconheceu em privado ao Conselheiro do Vice-Presidente que esperava evitar uma revisão judicial da sua proposta pois sabia que tal seria rejeitada por unanimidade pelo Supremo Tribunal. O Conselheiro do Vice-Presidente expressou ao Co-Conspirador 2 que aplicar a proposta resultaria numa ‘situação desastrosa’ em que a eleição poderia ter de ‘ser decidida nas ruas’”. Apesar disso, no mesmo dia, Trump encorajou os seus seguidores (via Twitter) a viajarem para Washington continuando a afirmar que o “o Vice-Presidente tem o poder de recusar os eleitores [do Colégio Eleitoral] fraudulentos”.

Novamente, isto precisa de ser provado num tribunal. Porém, este terá sido o ponto a que se chegou na ânsia, na avareza, na perdição de se manter o poder, de qualquer forma e a qualquer preço. Quando os acusados foram confrontados com as possíveis consequências dos seus esquemas, sangue nas ruas, caos social e institucional, crise constitucional, lei marcial nas ruas da nação, os conspiradores decidiram ir pelo caminho da máxima ruína, convencidos, seguramente que seriam bem-sucedidos, e quiçá, que nunca seriam punidos. Numa das últimas crónicas que escrevi para este espaço mencionei que o moto do Departamento de Justiça diz Qui Pro Domina Justitia Sequitur: “Quem faz a prossecução em nome da (senhora) justiça”. Os conspiradores, os acusados, os potenciais criminosos, podiam talvez acreditar que a senhora Justiça não chegaria, mas quando ela chega, empunha a espada e o fiel da balança.