(No ar). Interrompemos a emissão para fazer a ligação ao Estádio Nacional. Boa tarde, Bruno.
– Boa tarde, Carla. Estamos em direto com o António, jogador do Sport Futebol Clube. António, gostaria de lhe perguntar o seguinte: vai votar nas eleições presidenciais?
– Boa tarde. A decisão final é do mister e eu tenho que respeitar.
– E se perder o candidato que apoia?
– Há que levantar a cabeça e pensar na próxima partida. As derrotas fazem parte e é preciso foco no próximo desafio, passo a passo.
– E não está descontente com a percentagem de abstenção em Portugal?
– O futebol é isto. Há que respeitar o adversário, e cada um tem a sua estratégia. O mais importante é vencer, e ninguém gosta de perder.
– Mas olhe que isto não é sobre futebol. É sobre política.
– Ah, não percebi, peço desculpa!
– Então, o que tem a dizer?
– Há dias em que a bola não quer entrar. Vamos pensar jogo a jogo e tentar melhorar.
– Ok, obrigado, boa tarde.
– Adeus, obrigado.
Caro leitor, este diálogo ainda não aconteceu, mas se as coisas se mantiverem como estão, arriscar-nos-emos a testemunhar um acontecimento insólito como este. Não apenas por responsabilidade direta dos jogadores (em alguns casos) e não apenas por responsabilidade direta dos dirigentes (noutros casos). Gostaria de dar dois exemplos, antes de explicar porquê.
Recentemente, a jogadora da seleção nacional de futebol Matilde Fidalgo envolveu-se numa polémica no seguimento do uso da sua imagem num vídeo a propósito do movimento “Vermelho em Belém”. A polémica foi explicada e não falarei sobre ela em concreto, mas gostaria de citar as palavras da atleta a propósito desse momento: “Não faço campanha política, nem votarei, jamais, na Marisa Matias”. Também há pouco tempo, o jogador Francisco Geraldes publicou uma fotografia no seu Instagram, onde demonstrava o seu espanto e incompreensão aquando da vinda de Marine Le Pen a Portugal. Na caixa de comentários, um adepto disse que o futebol e a política não se podiam misturar. Como resposta ao comentário, Francisco Geraldes escreveu: “Isso é a água e o azeite”.
Mas agora deixo as perguntas: deve ou não o futebol intrometer-se na vida política? Devem ou não os seus ativos dizer o que pensam sobre a sociedade portuguesa?
E a minha resposta é: sim. Mas vamos por pontos, porque o assunto é delicado e a minha tese também tem contrapartidas.
1 O futebol está, em muitas circunstâncias, arredado da sociedade atual, quase como se fosse um patinho feito (ou bonito, depende da perspetiva) onde estão presentes os maiores e mais influentes grupos económicos, uma enorme quantidade de postos de trabalho e várias pessoas que servem de grandes exemplos para os jovens. Sendo cada vez mais um veículo para a formação integral do ser humano, seja pela prática ou apenas pela influência mediática e social, não me parece fazer sentido que se ponha de lado numa das áreas mais importantes da vida portuguesa. Os dirigentes, os árbitros, os treinadores e os atletas são cidadãos detentores de uma maior responsabilidade cívica e comunitária e é fundamental que se sintam parte de um todo que vai além do jogo.
2 A participação na vida política ativa faz-se de várias formas e em vários patamares, mais ou menos profundos e no futebol falhamos na maior parte deles. O apelo ao voto, por exemplo, é um princípio básico que qualquer cidadão, inclusive um jogador de futebol, deve reconhecer como seu. Com a taxa de abstenção cada vez mais elevada, como se verificou nestas eleições, os exemplos de maior cobertura mediática podem e devem ser agentes de mobilização. O apoio público a um candidato, por sua vez, pelo facto de implicar mais conhecimento da matéria e maior e melhor capacidade argumentativa, já poderá ser uma trincheira apenas para alguns cidadãos, quer sejam atletas profissionais, artistas ou médicos.
3 Partir do princípio que alguém, por ser jogador de futebol, não tem capacidade para dizer o que pensa, além de preconceituoso, é errado e não corresponde à realidade. No início, dei dois exemplos de pessoas preparadas e dar-vos-ei muitos mais se for necessário. Então, por que razão, nestas eleições presidenciais, com uma das maiores taxas de abstenção de sempre, com uma polarização política exagerada e perigosa, não se viram jogadores de futebol a participar ativamente na vida política? Portugal vive problemas graves de moderação e as pessoas que predominantemente dominam os meios sociais não têm uma palavra a dizer? Vou tentar não ser simplista, mas invoco duas razões para esse silêncio: em muitos casos, os jogadores não se interessam. Talvez sintam que têm como responsabilidade ser apenas bons jogadores, participarem em causas sociais e pouco mais. Penso que esse comportamento é manifestamente insuficiente, olhando para o panorama e influência do desporto rei na sociedade e, principalmente, nos jovens. Com isto não quero dizer que seja pedido aos atletas um empenho lamechas e moralista, mas é necessário um maior envolvimento para contribuir para uma sociedade mais atenta, mais livre e mais conectada. Um jovem, tendencialmente, não olha para os intelectuais, não admira os políticos, não quer saber se o pai ou a mãe dizem isto ou aquilo, mas imita o penteado do Cristiano Ronaldo, a voz de um qualquer youtuber e as piadas do Pedro Teixeira da Mota. É isso que ele vai levar para a escola, não é a Ilíada debaixo do braço. Este comportamento não é errado em si, mas é perigoso se o exemplo em causa for um exemplo de alienação, de anti-saber e de anti-conhecimento.
4 Noutros casos, ainda mais graves, os clubes de futebol, principalmente os grandes, têm uma espécie de lei da rolha que impede os atletas de se expressarem, de falarem, postarem nas redes sociais, darem entrevistas, etc… Pelo que temos assistido, este facto contribui para que o público em geral teça comentários preconceituosos acerca do meio futebolístico; contribui para que os jogadores engulam uma cassete guionada e muito desinteressante que não corresponde ao conteúdo do que querem expressar; contribui para que aqueles que têm opinião não a possam dizer; e contribui para um isolamento extremado de uma das áreas mais importantes da sociedade. Ricardo Costa, diretor da SIC e do Expresso, referiu que “os departamentos de comunicação estão a matar os clubes de futebol”. Não iria tão longe, mas esta espécie de lei da rolha, por mais que tenha bom fundo, não está a resultar e precisamos de pessoas que tenham valentia para acabar com ela.
5 É claro que existem contrapartidas, e talvez sejam as principais razões para muitos defenderem uma separação entre política e futebol, e nessa matéria estou totalmente de acordo. De um lado, a promiscuidade entre dirigentes, que acontece através das comissões de honra e não só; do outro, a independência que o futebol tem e que deve ser conservada. Em relação à promiscuidade, trata-se de incursões da política pelo meio futebolístico e vice-versa, e suscitam o que de pior existe nestas duas áreas: os conflitos de interesse, os jogos de poder, os casos que inflamam a justiça e outros graves vícios que fazem apodrecer duas tão dignas atividades da nossa sociedade. Se é para se juntarem dessa forma, prefiro que não se juntem. Em relação à independência, tenho de reconhecer que o futebol é um lugar de encontro, de unidade, onde podemos abraçar o vizinho do lado apesar das diferenças. Essa capacidade agregadora poder-se-ia perder se o futebol se transformasse num jogo demasiado politizado de barricadas e de inimigos.
Apesar disso, vale a pena arriscar! Acredito que os valores que se podem ensinar através do futebol têm poder para se sobreporem a tudo o resto se forem encarados com seriedade e integridade.
Por isso, louvo a coragem da Matilde Fidalgo, do Francisco Geraldes, do Bernardo Silva, do Bruno Fernandes e de muitos outros que, sem medo, dizem o que pensam, arriscam, com fundamento, com critério e com a coragem de enfrentar ideias, muitas delas infundadas, que continuam a residir na sociedade e no futebol. Atitudes como estas contribuem para o que considero ser uma das mais nobres missões do desporto: ajudar a sociedade a tornar-se mais justa, mais livre, mais atenta, mais comprometida, mais unida, mais plural e, dessa forma, mais evoluída.
Francisco Guimarães tem 23 anos. É treinador de futebol desde os 15 anos em clubes como o Estoril Praia ou o Delhi United, da Índia. É comentador de futebol na Sport TV, embaixador para a integridade no desporto e foi cronista no jornal Record. É especializado em psicologia do desporto e está a concluir a sua formação como treinador, tal como uma licenciatura em Artes e Humanidades na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É membro dos Global Shapers desde 2020.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.