Conta-se a história de um mecânico que, tendo sido chamado para consertar um carro avariado, terá olhado para o motor, desapertado uma pequena peça, soprado para ela e tornado a colocá-la no seu lugar. Seguidamente pediu ao dono do carro que o pusesse a trabalhar, o que aconteceu com sucesso. Quando lhe perguntaram quanto havia a pagar, terá respondido: “1000 €”. Perante a indignação do proprietário do carro que lhe exigia uma factura, preparando-se para dele fazer queixa, descreveu os serviços prestados da seguinte forma: “Soprar para a peça: 1€; saber qual a peça que precisava do sopro: 999€”.

A Medicina moderna é incompatível com a actividade isolada como nos tempos de Fernando Namora ou Miguel Torga: os medicamentos e outros consumíveis, os exames complementares são todos componentes de uma máquina com complexidade tecnológica, multidisciplinaridade, necessidade de diferenciação (porque ninguém pode ser excelente em tudo). A Medicina é exercida em ambientes colectivos, sejam hospitais, centros de saúde ou clínicas, públicas ou privadas, integradas, ou não, no SNS, onde o médico é apenas um dos membros da equipa que cuida do doente. Sendo o trabalho médico o mais diferenciado, é natural que sejamos os líderes da equipa.

Todos nós, médicos, já sentimos, em algum momento da nossa vida profissional, a injustiça do não reconhecimento do nosso trabalho ou das nossas decisões. “Eu estava cheio de tosse e o médico não fez nada, só me auscultou e me mandou beber muita água.”, ou então, “Eu bem queria que ele me operasse, mas só me mandou fazer natação.”, são frases caricaturais parecidas com o que, em algum momento, cada um de nós ouviu. Decisões como estas, a prescrição de “muita água”, de “natação”, bem como a decisão de não operar, podem pressupor muitas vezes anos de experiência e estudo e podem ser decisões com elevado grau de diferenciação.

Independentemente destas circunstâncias, o nosso trabalho continua a ter três grandes etapas: diagnóstico, tratamento e prognóstico. Neste ponto convém voltar à origem e nunca esquecer que a Medicina existe porque há alguém que precisa de ajuda, que está doente, e que há uma ordem correcta para o que deve ser feito. Essa ordem é: anamnese (história clínica), exame físico, enumeração de hipóteses de diagnóstico, pedido de exames complementares, enquadramento dos resultados dos exames complementares com as hipóteses de diagnóstico e formulação do diagnóstico final. Só depois destes seis passos é que deve vir o tratamento (com o acompanhamento dos seus resultados: sucessos, falhanços, complicações e iatrogenias) e que só no fim é que se passa à fase do prognóstico, que consiste no acompanhamento do doente já tratado até à cura (no caso das doenças agudas) ou à estabilização do estado de saúde do doente, desejavelmente o estado que precedeu este evento (no caso das doenças crónicas).

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Esta cadeia de valor da Medicina é sustentada em dois componentes da participação dos médicos no processo: o “pensar” e o “fazer”. O “pensar” é um trabalho intelectual de recolha de dados do doente e dos exames complementares para chegar ao diagnóstico, do processamento e relacionamento dos dados recolhidos, de modo a tomar as decisões relativas ao tratamento, mas também o acompanhamento do seu resultado. O “fazer” é a execução de uma técnica ou cirurgia que é precedida e sucedida de todas aquelas actividades. Ambos os componentes são igualmente importantes e apoiam-se no estudo e na experiência para atingirem a excelência. Ninguém nasce ensinado.

Na maioria das tabelas de preços ou sistemas remuneratórios da saúde (exceptuando aquelas em que a remuneração é por tempo), o “fazer” está sobrevalorizado em relação ao “’pensar”. Desde já porque se o médico “pensar” em tudo e, pensando bem, decidir não pedir os exames complementares, não medicar ou não operar, ou não fazer a técnica, não vai ser remunerado por isso. E isso é muito injusto, já que ambas as decisões, a de “fazer” e a de “não fazer” requerem igual diferenciação e conhecimento. É como se, no exemplo do mecânico, valorizássemos apenas o sopro, mas não o saber qual é a peça que dele necessita.

Esta igual valorização era incutida nos estudantes, ainda nas faculdades de Medicina, quando havia menos alunos e a dimensão das turmas permitia que se passasse tempo com os doentes, a ouvi-los, a fazer histórias clínicas e a discuti-las com os professores. Cada exame, cada análise, cada proposta terapêutica ou cirúrgica tinha de ser devidamente justificada. “O que é que estás à espera de encontrar com esse exame que estás a pedir?”, perguntava-me uma vez um grande professor que tive. Agora não há tempo. Turmas grandes e falta de tempo dos docentes dedicado ao ensino médico geraram a esta nova realidade que leva a que se pratique uma “medicina reversa”: não se cumprem os passos desta cadeia de valor do trabalho médico pela ordem certa o que, além de ser batota, aumenta a probabilidade de erro, de desperdício e de custos: pedem-se primeiro as análises e exames e depois vai-se ver se os resultados encaixam nas queixas do doente. Quando se pergunta qual é o problema de entrar um número tão grande de alunos para as faculdades de Medicina, este é um dos principais.

Ora, sendo o diagnóstico baseado na interacção com o doente (que se chama consulta médica!) o único passo da cadeia que não é passível de ser executado por outros que não os médicos, os donos das tecnologias que tornam possíveis os meios complementares de diagnóstico (e cada vez mais esses donos são outros, que não os médicos) passam a valorizar os médicos e os seu trabalho, não pela sua qualidade profissional, pela capacidade de fazer os diagnósticos certos ou de serem excelentes a tratar doenças (médica ou cirurgicamente) ou de acompanhar e apoiar os doentes – no fundo, de resolverem os problemas aos doentes – mas sim pela capacidade que cada um de nós tem de pedir exames. No outro dia ouvi um administrador hospitalar a gabar-se de que tinha conseguido contratar uma equipa de médicos que representavam 2 milhões de euro anuais de facturação por exames e cirurgias realizadas. E quem não sentiu já pressão para pedir mais análises ou exames de imagem, que atire a primeira pedra.

Slots de 15 minutos para uma consulta, em que metade do tempo é a lutar contra o sistema informático, também não ajudam. Esses tempos curtos não são inocentes: não interessa que se perca muito tempo a falar com os doentes, apenas o tempo necessário para passar a requisição de mais exames. Esperemos que a publicação do documento orientador para os tempos de consulta ajude a mitigar este problema.

Mas talvez a causa mais importante para esta distorção seja a maneira como as tabelas de preços estão organizadas, quer as das seguradoras, as dos subsistemas de saúde e até as do SNS. A própria posição da Ordem dos Médicos, cuja posição oficial é o “Código de Nomenclatura e Valor Relativo dos Actos Médicos” contribui em grande parte para isso. Este documento foi publicado pela primeira vez em 1980, sendo a última grande revisão realizada em 1997. É reconhecido que neste momento está desatualizado em muitas áreas e está em curso a sua revisão. A relevância deste documento resulta do facto de ninguém, para além dos médicos, ser competente para fazer esta avaliação relativa. Apenas nós podemos avaliar o contributo de cada passo da cadeia de valor para o doente. Mas para o “valor relativo” dos actos médicos ser justo, tem de ser indexado ao contributo de cada decisão para resolução do problema dos doentes. É este o único critério que deve prevalecer. O diagnóstico é o passo essencial para que o tratamento correcto seja escolhido e tem de passar a ter valor, só por si.

Isso mesmo fica claro com a recente publicação do regulamento dos actos médicos (Regulamento n.º 698/2019, Diário da República, 2ª série, nº 170, de 5 de Setembro de 2019), que também pode vir a dar uma enorme ajuda, ao incluir no conteúdo da profissão médica todas as etapas da interacção do médico com o doente em igualdade hierárquica, podendo servir de base para uma nova sistematização. No seu artigo 6º, diz o seguinte:

Ato médico em geral

1 – O ato médico consiste na atividade diagnóstica, prognóstica, de vigilância, de investigação, de perícias médico-legais, de codificação clínica, de auditoria clínica, de prescrição e execução de medidas terapêuticas farmacológicas e não farmacológicas, de técnicas médicas, cirúrgicas e de reabilitação, de promoção da saúde e prevenção da doença em todas as suas dimensões, designadamente física, mental e social das pessoas, grupos populacionais ou comunidades, no respeito pelos valores deontológicos da profissão médica.

2 – Constituem ainda atos médicos as atividades técnico-científicas de investigação e formação, de ensino, assessoria, governação e gestão clínicas, de educação e organização para a promoção da saúde e prevenção da doença, quando praticadas por médicos.

Cada uma destas actividades, elencadas neste regulamento como “actos médicos” constitui um contributo para criar valor para o doente. São estes os componentes que têm que ser considerados quando se atribui um preço para o trabalho médico, e valorizam, de modo igual, o “pensar” e o “fazer” como componentes equivalentes da actividade dos médicos.

Dentro desta matriz, a valorização do trabalho médico deve considerar vários factores: a diferenciação requerida, os recursos gastos, a infraestrutura necessária. Mas todos trazem valor para o doente e esse valor deve ser reflectido nas tabelas de honorários. O diagnóstico deve ser remunerado de forma independente do tratamento que for decidido, mesmo que não seja decidido nenhum. E uma técnica ou cirurgia feita por um colega, baseada no diagnóstico feito por outro deve partilhar os louros (e eventualmente parte do rendimento) com ele. O tema é delicado, pois pode dividir os médicos: especialidades médicas contra cirúrgicas, especialidades técnicas contra quem fez o diagnóstico, cirurgiões contra anestesistas e até cirurgiões da mesma especialidade, mas com diferenciação diversa. É nessa divisão que outros apostam. Mas nós, médicos, temos que ser os primeiros defensores desta solidariedade interpares para evitar manipulações e submissões a outros interesses comerciais que não têm nada a ver com o interesse dos doentes.

Por outro lado, a valorização de um trabalho médico de qualidade tem que passar pela medição de resultados, não só em termos de resultados económicos, como tem genericamente sido feito até agora, mas sobretudo em valor para o doente. Isso deveria ser o principal factor a determinar o preço que deve ser pago. As tabelas de preços dos serviços prestados têm de assumir uma filosofia que não estimule a procura nem a multiplicação de actos, mas sim que tome conta do doente, com o objectivo de lhe resolver o problema que o afecta com os melhores resultados possíveis.

No concreto, as situações não podem ser todas consideradas da mesma maneira. Nas doenças agudas a unidade de contabilização (e, consequentemente, de facturação) deve ser o episódio. Nas doenças crónicas, essa unidade deve ser baseada no tempo de seguimento (semanas ou meses). Mas a medição do valor que o doente obteve tem que presidir à magnitude dos pagamentos.

Um medicamento que custa milhares de euro para prolongar a vida em pouco tempo, muitas vezes sem qualquer qualidade de vida, merece ser pago da mesma maneira do que outro que resolve mesmo o problema ao doente? Um exame que não acrescenta ao diagnóstico deve ser valorizado da mesma maneira do que outro que dá o diagnóstico e permite o estabelecimento de uma estratégia terapêutica? Uma cirurgia mais complexa, com mais complicações, por muitos recursos que consuma, deve ser tão valorizada como uma outra técnica que permita ao doente ficar bem mais depressa e com menos complicações. Todas estas questões devem ser colocadas e as verdades absolutas que temos devem ser enfrentadas.

E quem é a melhor pessoa para avaliar o sucesso? Os próprios doentes, claro! Há vários métodos de quantificar esse sucesso, genericamente chamados PROM (Patient Reported Outcome Measures/Medidas de Resultado Reportadas por Doentes), e PREM (Patient Reported Experience Measures/Medidas de Experiência Reportadas por Doentes), complementadas por CROM (Clinician Reported Outcome Measures /Medidas de Resultado Clínicos). Neste campo há actualmente um fervilhar de investigação e novas direcções vão sendo descobertas para acabar com o paradigma de se cobrar as intervenções sem olhar ao resultado.

Já passou um quinto do século XXI, brevemente passará um quarto. E continuamos a avaliar a Medicina à moda do século XIX. Os custos atingem valores incomportáveis e os recursos podem não estar a ser dirigidos para as soluções que mais interessam a quem está doente. Desafiar este status quo terá implicações na prática médica, na organização dos serviços, nas opções de investigação, nos investimentos hospitalares, nas opções de carreira dos jovens médicos e em muito mais aspectos da organização dos sistemas de saúde. O SNS deveria ser líder desta transformação, começando por mexer nos contratos-programa e tabelas de preços. Todos os outros (ADSE, seguros) assumirão de seguida, porque esta é a maneira certa de usar os recursos de modo a colocar os doentes em primeiro lugar.