Qualquer pessoa que saiba ler, mesmo que não compreenda o que lê, tem acesso a um manancial de informação incalculá­vel. O “Dr. Google” inunda os nossos doentes de informação, tantas vezes desordenada, sobre os nossos diagnósticos, indicações e contraindicações dos medicamentos que prescrevemos e até opiniões sobre conceitos, tendências e outras “verdades”.

Ora, a Medicina ocidental ou hipocrática (chamemos-lhe assim) é uma ciência. E uma ciência tem regras. Aquilo que começámos a aprender na universidade e todos os dias da nossa vida profissional continuamos a aprender uns com os outros e também com os doentes, baseia-se no método científico: hipótese, colheita de dados, análise de dados, conclusões e tese. Se, por exemplo, nós hoje sabemos que os inibidores das beta-lactamases aumentam o espectro da amoxicilina é porque alguém demons­trou, numa experiência replicável de laboratório, que isso acontecia numa placa de Petri, depois, outros puderam verificar o mesmo na clínica. E hoje, frase seguinte constitui aquilo a que se chama uma verdade científica: “A associação de amoxicilina ao ácido clavulânico é mais eficaz do que a amoxicilina sozinha no tratamento de um número consi­derável de infecções bacterianas”. E esta informação passa a ter influência na maneira como os médicos prescrevem antibióticos aos seus doentes. Do mesmo modo, se não se verifica que a ivermectina é eficaz a combater a COVID-19, não é feita a recomendação nesse sentido e os médicos não a devem usar.

O risco de não proceder assim é o de sujeitar pessoas doentes (e, por isso, vulneráveis), a tratamentos cuja eficácia e segurança não estão devidamente garantidas, com consequências imprevisíveis. É o equivalente a ir ao feiticeiro da tribo e beber uma das mezinhas que ele nos apresenta. Aquilo que falta às “medicinas” não hipocráticas é isto: submeterem-se e sujeitarem-se à demonstração de eficácia e segurança baseadas no método científico. Até lá, não podem ser consideradas legítimas numa sociedade moderna, com todas as implicações que esta afirmação pode trazer. A diferença entre um congresso médico e o congresso do Padre Fontes, de Vilar de Perdizes, é a presença ou ausência do método científico no estabelecimento das orientações emanadas de cada um deles.

A pandemia da COVID-19 constituiu uma experiência inovadora para a maioria de nós, médicos, mas também para os doentes e para a população em geral. As verdades científicas que podem guiar as decisões dos médicos e autorida­des foram sendo estabelecidas ao mesmo tempo que o desenrolar dos factos exigia que outras decisões com impactos mais gerais fossem tomadas. E isto aconteceu a uma velocidade nunca vista anteriormente. Por isso é que essas discussões (que habitualmente são feitas no recato das universidades, hospitais, empresas farmacêuticas e autoridades regulamentares) aconteceram quase em directo, nas televisões, nas redes sociais, em fóruns políticos. Ficou à mostra de todos que até uma verdade científica ser robusta, ela passa por fases de instabili­dade, pelo contraditório, por correções e apuramentos, de modo a estabilizar num estado em que possa ser útil para resolver problemas de saúde que afligem médicos, pessoas e populações. Mesmo assim, a verdade é sempre provisória e pode ser desafiada por novos dados que, entretanto, surjam e sejam suficientemente relevan­tes para mudar as premissas do raciocínio ou as condições da experiência que permitiu fixar o conhecimento anterior.

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Nesta sociedade de informação ilimitada, reina o apelo e o recurso ao imediatismo. É preciso avançar depressa a informação, a opinião, a conclusão e isso é incompatível com o ritmo a que a ciência vai produzindo a verdade.

Tivemos o nosso primeiro-ministro muito zangado, após uma das reuniões do INFARMED, porque os peritos ali presentes ainda não estavam de acordo quanto às medidas a tomar, dificultando o seu desejo de tomar decisões sem risco.

Tivemos vários cientistas a travarem debates em público, discordando uns dos outros, mimetizan­do a discussão que devia ter sido tida no recato das instituições, e assim contribuindo para a insegurança das pessoas.

Abundaram os “especialistas” em epidemiologia, imunologia, virologia e outros temas, que surgiram nas redes sociais e na televisão, como se estivessem na posse de todo o conhecimento e todos os dados que permitissem antecipar as conclusões que os cientistas ainda não tinham conseguido. Apenas contribuíram para a confusão generalizada.

Para a confusão também contribuíram os media, mesmo os profissionais, que não ajudaram, ao promover essas discussões na praça pública. Tenham paciência, senhores, mas o prime time da televisão não é o local certo para se ter estas discussões. Mesmo considerando a necessidade de audiências e mesmo reconhecendo a máxima de Andy Warhol, que todos têm direito aos seus 15 minutos de fama. A argumentação pública de questões polémicas beneficia mais os negacionistas da ciência do que a divulgação das suas conclusões, ainda mais quando o resumo é feito ao domingo à noite por pessoas, supostamente opinion leaders que não percebem patavina do assunto. Não há qualquer interesse em divulgar dúvidas.

No conjunto, a Humanidade está de parabéns pela forma como se uniu para resolver esta ameaça que nos assola há mais de dois anos. É admi­rável como fomos capazes de cooperar, partilhando informação que, noutras condições, teria sido segredo, desde o genoma do vírus, aos dados sobre a produção de vacinas. Faltam ainda duas coisas muito importantes: que se descubra tratamento eficaz dirigido ao SARS-Cov2 e que as vacinas cheguem a todo o mundo. Também é necessária cautela na forma como a comunicação científica é feita para a população geral. Só então estaremos em segurança.