Esperávamos, desejávamos, conseguimos: vitória! Desculpem se esta crónica parecer excessivamente contaminada pelo entusiasmo. É porque o é. Estou feliz e a comemorar há 48 horas ininterruptas, e quem tem de perguntar a razão não é patriota, nem bom chefe de família, ou sequer um ser humano completo. É óbvio que comemoro a escolha de Portugal para organizador do campeonato do mundo da bola em 2030. De Portugal, do que entretanto sobrar de Espanha, de Marrocos, do Uruguai, do Paraguai, da Argentina e talvez do Chile. Com jeito, haverá mais países organizadores do que equipas participantes. E assim é que é bonito. Foi pena a Ucrânia ter ficado pelo caminho, e não se ter agregado a Venezuela, a Ilha da Páscoa, o Sudão, a Síria e o Alto Carabaque. Mas ainda vamos a tempo. Para já, a companhia é de gabarito.

É claro que, como de costume, a FIFA mostrou-se inflexível nos critérios de admissão. Há muito que a entidade que tutela o futebol internacional não abre a organização do “mundial” a qualquer um, apertando o filtro de modo a que apenas passem nações prósperas, livres e democráticas. Sucedeu com a África do Sul em 2010, o Brasil em 2014, a Rússia em 2018 e o Qatar em 2022. Ao negociar com governos sérios, a FIFA garante a seriedade de todo o processo. Fora o ocasional e irrisório suborno, a remoção de indigentes da via pública para evitar mau aspecto e o falecimento de uns quantos trolhas imprudentes, aqui não se brinca.

Na parte que nos interessa, a coisa promete. Pelo menos o dr. Costa já prometeu que o “mundial” será “um enorme sucesso” e “uma nova demonstração da capacidade” que temos para receber maravilhas do género. Ora isso é que importa. Custos? Os custos não importam. E por não importarem é que ninguém os conhece. O rigor orçamental não pode sobrepor-se ao prestígio da pátria e à alegria do povo. Eu próprio aplico esse princípio no quotidiano: primeiro mando vir o lavagante, depois constato o preço, por fim tento explicar ao empregado de mesa que a conta deve ser partilhada pelos contribuintes em prol da equidade. Às vezes o empregado é casmurro e pouco versado em finanças modernas. De qualquer modo, o prejuízo destes eventos históricos raramente ultrapassa as centenas de milhões, contrapartida ridícula face aos ganhos simbólicos e meros trocos para as possibilidades de uma economia pujante (e não falo só da paraguaia).

Agora, o fundamental é parar de celebrar e lançar mãos à obra, leia-se às verbas disponíveis. É urgente nomear cinco ou seis comissões, observatórios e gabinetes para planeamento e supervisão do que há a fazer, além de nomear cinco ou seis comissões, observatórios e gabinetes. Antes disso, porém, convém começar pelas conclusões, e concluir que, como sempre, um grande acontecimento é um pretexto para construir o futuro. O futuro e o que calha. O “Europeu” de 2004, por exemplo, abençoou-nos com uma resma de estádios novinhos em folha, alguns dos quais até continuaram a ser utilizados após a competição. Hoje, os ditos estádios estão naturalmente velhos e ultrapassados. O ideal seria erguer de raiz uma dúzia de recintos, três para os únicos jogos que se vão jogar cá (incluindo, com sorte, um desafio dos quartos-de-final!) e nove de reserva. Caso não se consiga, no mínimo há que actualizar os estádios existentes, apetrechando-os com ar condicionado, tectos removíveis, ecrãs individuais com WiFi, poltronas em pele e balizas em mogno.

Bem entendido, as infra-estruturas necessárias a três (ou quatro) partidas não se esgotam nos campos de jogo. Sermos anfitriões de 4% (ou 5%) de um torneio desta dimensão é uma oportunidade para remodelar o país em peso. Para início de conversa, há que despachar o segundo, e quiçá um terceiro, aeroporto de Lisboa. Se formos responsáveis, amanhã abre-se concurso para a ampliação do aeroporto do Porto. Ferrovia? É rasgar depressa o território com linhas de alta-velocidade, de norte a sul, de leste a oeste e ao contrário. Rodovias? Sugiro “circulares” inéditas na AML e na AMP, um punhado de auto-estradas para ali e para acolá e “troços” avulsos. Pontes, carecemos de pontes em diversos lugares. Viadutos, os suficientes. Rotundas, imensas, com arte de Joana Vasconcelos e Bordalo II em cima ou em baixo. Ciclovias, a dar com um pau. Precisamos de reforçar linhas de autocarros, metros e cacilheiros, em greve total ou parcial. Precisamos de inaugurar hotéis com abundância, de preferência nos edifícios interditos ao alojamento local e que o governo ia converter em residências em 2018. Precisamos de fingir conciliar os desígnios acima com a neutralidade carbónica, que é um pechisbeque bonito nos discursos. Precisamos de apresentar tudo numa cerimónia digna e grandiosa, com variedades e foguetório. Precisamos de ambição, dinâmica e visão. Precisamos de dinheiro, que virá do PRR permanente e, com maior probabilidade, dos nossos prestáveis bolsos.

A “Expo”. O “Euro”. O Rock in Rio. A Eurovisão. A Ovibeja. A final da Champions para médicos e enfermeiros. As Jornadas da Juventude. Uma fracção do “mundial”, ainda que pequenita, é outra ocasião rara para tentarmos espantar o mundo. Espero que seja desta que o mundo se espanta connosco. Nós, por cá, já não nos espantamos com nada.

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