2006 foi o último ano em que, até ver, o campeonato do mundo de futebol se realizou num país sob regime aborrecido, a Alemanha. Desde então, tem sido um pagode.

Em 2010, o “mundial” viu-se entregue à festiva África do Sul, que distraidamente pagou aos senhores da FIFA uma quantia apreciável e que, a fim de acomodar o evento, passou os meses anteriores ao mesmo a escorraçar e prender mendigos e outros elementos susceptíveis de perturbar os visitantes. Em 2014, a honra coube ao soalheiro Brasil da dona Dilma e do sr. Lula, que possivelmente pagou aos senhores da FIFA uma quantia apreciável e patrocinou viçosos subornos e “derrapagens” na construção dos estádios, a exploração de inúmeros trabalhadores, a morte de uma pequeníssima percentagem desses trabalhadores, o desalojamento de largos milhares de desgraçados das suas casas e, no geral, uma operação de propaganda que revelou à Terra o esplendor da corrupção local e um “time” capaz de encaixar sete golos. Em 2018, coube a vez da impoluta Rússia (sim, essa Rússia) do sr. Putin (sim, esse sr. Putin), que inevitavelmente pagou aos senhores da FIFA uma quantia apreciável, desatou a explorar nacionais e a escravizar norte-coreanos para erguer estádios, e orientou o espancamento e o sumiço dos indigentes que poluíam as cidades onde os estádios estavam.

Perante tal currículo, seria um desconsolo que o anfitrião do torneio de 2022 baixasse as expectativas. Se possível, a FIFA subiu-as: escolheu o Qatar. É verdade que o Qatar ajudou à escolha, pois evidentemente pagou aos senhores da FIFA uma quantia apreciável, incrementou a escravatura de imigrantes para produzir infra-estruturas modernaças e, no processo, matou-os em quantidades discutíveis (entre 3 – três – segundo as autoridades indígenas e 6500 – seis mil e quinhentos – ou 10000 – dez mil – segundo a imprensa estrangeira).

O engenho do Qatar não se esgota aqui. O território é uma teocracia nas mãos de uma família eleita pelos céus e guiada pela Sharia, onde a apostasia é punida com cadeia, chicotadas e, nos casos graves, fuzilamento; onde a blasfémia é punida com cadeia, chicotadas e, nos casos graves, fuzilamento; onde a homossexualidade é crime punido com cadeia, chicotadas e, nos casos graves, fuzilamento; onde o adultério… etc. No Qatar, as mulheres gozam da liberdade compatível com o islão, que do alto da sua bondade permite a existência delas e, com leviandade discutível, o respectivo voto.

Mas nem tudo é bom no Qatar. Também há coisas óptimas. Os naturais do ermo, perdão, emirado têm dinheiro. Consta que os shoppings são impecáveis. Os arranha-céus são homenagens solenes à foleirice. Os carros de luxo abundam nas ruas. O tráfico de crianças é corriqueiro. E isto sem referir os elevados padrões da península na política internacional, com o histórico ódio a Israel, a devoção pela “causa” palestiniana, a instigação do “jihadismo” no Médio Oriente e o suporte diplomático e financeiro à Irmandade Muçulmana e ao Hamas. Não sei a que título alguns protestam contra o “mundial” do Qatar.

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Certas federações da bola, pelo menos as dos EUA, da Austrália e da Dinamarca, mostraram-se chateadas com a questão dos direitos humanos. Um jogador português, Bruno Fernandes, confessou-se chateado com a questão dos direitos humanos e, sobretudo, com a tenebrosa interrupção da época e o sinistro horário dos jogos. Por sorte, nenhum dos queixosos compreende bem o conceito de discórdia, que no caso consistiria em não participar naquilo que nos repugna. Assim, sem excepção, todas as selecções apuradas e todos os futebolistas convocados estarão presentes no Qatar, recebidos em histeria por claques falsas.

Ainda bem. Os “mundiais” acontecem apenas a cada quatro anos e, para lá dos merecidos retornos para a FIFA e os organizadores, são uma oportunidade episódica para que os profissionais da bola exibam habilidade técnica, tatuagens sublimes e penteados na vanguarda do universo capilar. Além disso, a exposição global permite a milionários remediados a assinatura de contratos que os tornem milionários sem remédio. E lembre-se os biliões de adeptos, que contam com a celebração do “beautiful game” para despachar cervejas e inspirar os filhos nos nobres valores do desporto.

Como antes os ligeiros deslizes de Rússia, Brasil e África do Sul (e da Argentina, em 1978, e da Itália, em 1934), os pecadilhos do Qatar não devem ser susceptíveis de comprometer os desafios no relvado. O totalitarismo político, o esclavagismo, a homofobia, a subalternização das senhoras, o racismo, o terrorismo, o anti-semitismo e maçadas similares são só pechisbeques retóricos com que, em determinados contextos sociais, as almas sensíveis enchem a boca – para a esvaziarem mal o árbitro sopre o apito inicial. Por cá, o prof. Marcelo já deu o mote: esqueçamos as irrelevâncias, que o importante é concentrarmo-nos no essencial, ou seja, em gritar por valentes que vão legitimar uma simpática e sangrenta ditadura, e em achar normal que o PR, o PM, o presidente da AR e resmas de sumidades viajem a nossas expensas para observar e apoiar e comentar ao vivo a “equipa de todos nós”.

A mim, por exemplo, ninguém poderá acusar de ignorar o “mundial” e a “selecção” por causa das minúsculas idiossincrasias do Qatar. Ignoro o “mundial” e a “selecção” porque tenho mais que fazer.