Quando, há dias, li que o músico Gilberto Gil fora agredido no Qatar, imaginei logo tabefes, sangue, hospitais, perigo de vida. Por sorte, o vídeo que registou o episódio mostrou que a coisa não chegou a tanto: tratou-se apenas de alguém que, à passagem do ex-ministro da Cultura, repetia o nome de Bolsonaro enquanto agradecia, presume-se que ironicamente, as preferências eleitorais do sr. Gil. O sr. Gil nunca reagiu à interacção. Aos 57 segundos do vídeo, o “agressor” lançou o velho insulto que tecnicamente ofende a mãe do visado. O sr. Gil, de costas, saiu de cena. E foi assim. Desagradável? Com certeza. Uma tragédia inconcebível, com direito a indignação dos “media” brasileiros em peso, incluindo notícias televisivas e capa de um dos principais jornais do Rio? É capaz de ter sido excessivo.

Principalmente se os excessos padecem de viés político. Recuperado da inominável agressão, o sr. Gil pediu “um Brasil sem ódio”. Não foram palavras fortuitas. O ódio, todos nos garantem, é exclusivo dos apoiantes de Bolsonaro, um boçal que para início – e fim – de discussão nos asseguram ser um genocida. Do lado oposto, Lula, um boçal que nos asseguram não ser um ladrão, era o candidato da “paz” e do “amor”, os combustíveis dos respectivos admiradores. O coração destes transborda bondade, circunstância que torna peculiar a atitude tomada para com o principal futebolista da selecção local, desde que esse futebolista subscreveu a candidatura do referido genocida. É grave? Também não acho. As pessoas, mesmo aquelas que correram às urnas para combater o ódio, têm o direito de odiar.

E, conforme se nota, odeiam sem parança. Há dois meses que Neymar é alvo de uma quantidade incomensurável e diária de ofensas e ameaças, as quais subiram de intensidade e volume a partir do instante em que se lesionou, já durante o Mundial da bola. Num ápice, a metade pacífica, amorosa e ecuménica do Brasil desatou a festejar o infortúnio do homem e a desejar ruidosamente que o infortúnio se prolongue até ao fim do campeonato. Os mais bondosos chegam a desejar-lhe a morte. Isto na internet. Os “media” tradicionais concordam discretamente com a internet ou ignoram o assunto. Não houve manchetes, caça aos agressores, comoção nacional. Tirando a crítica de meia dúzia de comentadores desportivos e a solidariedade de alguns ex-colegas de profissão, com Ronaldo à cabeça, não houve nada. Pelos vistos, milhões de agressões (verbais) a Neymar, que votou em quem não devia, não equivalem a uma única agressão (verbal) ao sr. Gil, que votou em quem era imperativo votar.

Confesso escasso interesse por Neymar, que mal vi jogar, pelo sr. Gil, de que recordo duas ou três músicas decentes da década de 1960 e inúmeras figuras tristes nas décadas seguintes, e pela realidade brasileira em geral. Aqui, o que me interessa é o carácter universal, ou no mínimo ocidental, da discrepância de critérios, da manipulação informativa e da opressão tão discreta quanto eficaz. Não é somente a liberdade de informação que está evidentemente condicionada, nem a liberdade de expressão que está provavelmente em risco: o ar dos tempos vai erguendo muros altos, feios e sólidos à própria liberdade de pensamento.

Por toda a parte, crescem os muros, ou “cercas sanitárias”, em redor do que é tolerável dizer e, por arrastamento, pensar. Uma cartilha tácita, crescentemente estreita, delimita o espaço disponível à opinião individual. No fundo, podemos pensar e dizer o que quisermos – logo que o que pensamos e dizemos observe a cartilha, ou seja, logo que a opinião individual não ouse ser opinião e ser individual. Já não há duas, ou três, ou trinta perspectivas possíveis na saúde, na doença, no clima, no sexo, nas minorias, nas maiorias, nos negócios, nos regimes, na História, nos transportes, nos regimes, nos costumes e no que afinal determina tudo o resto, incluindo o respeito pela dignidade do sr. Gil e a repulsa pela indignidade de Neymar, a ideologia. Há uma perspectiva. Uma. E mil cognomes para os dissidentes com ou sem razão: “negacionistas”, “fascistas”, “racistas”, “colonialistas”, “supremacistas”, etc. Nem sempre os dissidentes têm razão, mas a razão perdeu relevância num mundo em que a obediência prevalece sobre os factos. O conformismo é a regra, e a regra é o conformismo.

Em prol de um “bem comum” de origem sombria e pertinência nula, a vida democrática deixou de ser um lugar onde se permite escolhas para se transformar num acanhado reformatório de doutrinação e castigo. Ou é de mim, ou a vida democrática começa a parecer-se pouco com a democracia, e a parecer-se demasiado com uma ditadura. A legitimação pelo voto? Não serve de muito se só o voto “deles” e “neles” é legítimo, e os demais uma blasfémia a punir e calar. Neymar que o diga, se ainda lhe permitirem falar.

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