Ai, Kamala Harris é mulher!

Ai, Kamala Harris é afro-americana, mas também é índio-americana!

Ai, temos uma mulher das minorias com um lugar na Casa Branca!

Era assim que a atual candidata à presidência dos Estados Unidos da América (EUA) era tratada nos meios de comunicação tradicionais. E os que estiveram sempre mais inclinados para apoiar Trump podiam dormir descansados, que Kamala tinha a reputação de ter sido uma procuradora-geral dura, obstinada e incómoda para os membros mais à esquerda do Partido Democrata.

Muito sinceramente, acho que essas tentativas de consolar os que vêem em Kamala Harris uma figura ambiciosa e fiel à ala mais à esquerda do partido dos “liberais” e progressistas dos EUA refletem uma completa ignorância quanto àquilo que a candidata tem defendido nos últimos quinze anos. Pelo menos no que toca ao combate ao crime e a políticas de segurança pública.  Já nem voltarei a comentar aqui as provocações deixadas por Harris a todos aqueles que, na América de hoje, lutam pelo reconhecimento dos direitos fundamentais dos nascituros e pelo respeito pelas potenciais mães norte-americanas. Vamos por partes.

Como District Attorney (procuradora de distrito) de São Francisco, Harris encabeçou programas de desvio (“diversion programs”), uma forma de sentença pré-julgamento intencionado a remediar o comportamento que levou o acusado a ser detido. Como já era previsível, estes programas evitaram que alguns criminosos fossem para trás das grades. Para além disso, ela apoiou pelo menos uma iniciativa de programas de formação sobre preconceitos implícitos (“bias training”), que têm como objetivo equipar os oficiais da justiça com estratégias e meios para agirem de forma mais objectiva possível, limitando a influência dos preconceitos implícitos nas suas condutas.

Enquanto Attorney General (procuradora-geral) da Califórnia, Harris mostrou uma posição favorável à iniciativa da Proposition 47, um referendo também conhecido como Criminal Sentences. Misdemeamor Penalties. Initiative Statute (que se pode traduzir, em português, para “Estatuto de iniciativa sobre sentenças criminais e penalidades por contraordenação”), que passou em 2014. Chegou a argumentar que a passagem do referendo iria levar à redução nos custos de encarceramento. Esta Proposition 47 reclassificou o furto de lojas (quando o valor da propriedade furtada não exceder os 950 dólares), um roubo maior (na mesma condição), a recepção de propriedade roubada (na mesma condição), a falsificação (nas mesmas condições), a fraude (nas mesmas condições), a escrita de cheques sem cobertura (nas mesmas condições) e a utilização da maior parte de drogas ilegais (a partir de uma quantidade precisa) assim transformando estes crimes graves (“felonies”) em contraordenações (“misdemeanors”).

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Nesse mesmo ano, ela voltou a chocar os norte-americanos ao recusar-se a autorizar a aplicação da pena de morte ao assassino do agente de autoridade Isaac Espinoza. Isso apesar de, como refere Bill Whallen, em “Enter Kamala – And Scrutiny Of Her California Years” (publicado no website do Instituto Hoover, a 1 de Agosto de 2024), o homicídio de um agente da polícia ser considerado uma “circunstância especial”. A oposição assumida de Harris à pena de morte poderá ter levado o júri a considerar David Lee Hill, o gangster que assassinou Espinoza, culpado de um assassínio de segundo grau, o que geralmente comporta, segundo os professores John Yoo e John Shu, no seu artigo de opinião “Kamala was a rogue Soros-like prosecutor before it was popular among woke elites” (publicado a 31 de Julho de 2024 no website da Fox News), uma sentença de entre 15 anos a perpétua. Para além disso, revelou uma falta de cortesia ao não comunicar directamente com a família de Espinoza antes de realizar uma conferência de imprensa em que revelou a sua decisão de não condenar o homicida em questão com a pena capital.

Como nos recordam os professores John Yoo e John Shu, no artigo já referido, Harris nem chegou a considerar, antes do caso Espinoza, a sentença da pena de morte para um imigrante ilegal e membro do gangue MS-13, também conhecido como Mara Salvatrucha, que começou a operar na cidade de Los Angeles e se veio a tornar numa organização criminal convencional, tendo deixado de limitar a sua actividade à proteção de imigrantes salvadorenhos de outros gangues criminosos. Estamos aqui a falar de Edwin Ramos Umaña, que havia sido anteriormente condenado por roubo e assalto, incluindo a uma mulher grávida, e outros crimes, e que assassinou o gerente de uma mercearia Anthony Bologna, juntamente com os seus dois filhos. Umaña foi só condenado na década seguinte e a viúva e os outros filhos do casal foram submetidos a proteção de testemunhas.

Como nos relembram Yoo e Su, Harris também mostrou uma mudança notável de posição quanto à maneira de lidar com os crimes sexuais. Em 2006 (ainda era procuradora de distrito de São Francisco), ela defendeu a Jessica’s Law (“Lei de Jessica”), uma lei que entrou em vigor no estado da Florida em 2005 e que serviu de modelo para uma hipotética lei federal, a Jessica Lunsford Act, que nunca chegou a ser aprovada pelo Congresso dos EUA. Contudo, desde a entrada em vigor da Jessica’s Law, 42 dos estados dos EUA introduziram leis baseadas na mesma. A Lei Jessica impôs penas mais pesadas a molestadores de crianças, incluindo a imposição de uma sentença mandatória mínima de 25 anos de prisão e a monitorização eletrónica vitalícia, quando a vítima tiver menos de 12 anos de idade. Já como procuradora-geral da Califórnia, ordenou aos agentes de liberdade condicional que ignorassem as restrições sobre onde os criminosos sexuais poderiam viver.

Em 2019, a Senadora Kamala Harris apresentou um pacote legislativo que iria acabar com as fianças, eliminaria a disparidade das sentenças a serem aplicadas ao consumo do crack e da cocaína, legalizaria a marijuana, aboliria o confinamento solitário e a pena de morte, e erradicaria o período mínimo de sentença no sistema federal.

Antes na nomeação de Joe Biden como candidato pelo Partido Democrata a presidente dos EUA, em 2020, Harris contribuiu com um artigo para um compêndio com o título “Ending Mass Incarceration”, publicado pelo Brennan Center for Justice, que tem sede na Universidade de Nova Iorque. Nesse artigo, ela lamenta que “os Estados Unidos encarcerem mais os seus cidadãos do que qualquer outra nação do mundo” e defendeu “mudanças estruturais transformadoras”, entre as quais o aumento de recursos dirigidos aos defensores públicos (“public defenders”, que correspondem, em Portugal, aos procuradores do Ministério Público).

Durante os motins de 2020, logo após a morte de George Floyd, Harris, em colaboração com o Senador Corey Booker, redigiu o George Floyd Justice in Policing Act. Essa proposta de lei configuraria um registo nacional de má conduta dos agentes policiais para prevenir que estes escapassem às consequências das suas ações através da mudança de jurisdições. Segundo Rafael A. Mangual, que dedicou o seu artigo “More or Less Progressive”, publicado em Julho de 2024 no website do Instituto Manhattan, a analisar o alinhamento político do percurso de Kamala Harris quanto ao crime e à segurança pública, o conteúdo dessa proposta de lei previa, entre outras provisões: a diminuição do onus probandi, ou ónus da prova, em casos de má conduta do agente da autoridade: restringiria a utilização dos “no-knock mandates” (talvez possam ser traduzidos, em português, para “mandados sem aviso prévio”) e das técnicas de aperto de pescoço pela polícia; limitaria a imunidade qualificada para os polícias. Como previsível, em entrevista para o The View, Harris rejeitou a “ideia de que, para se buscar segurança, coloca-se mais polícias na rua”, depois de defender uma revisão “de como fazemos segurança pública na América”.

O percurso de Kamala Harris, pelo menos desde que deixou o cargo de procuradora de distrito de São Francisco, é um percurso de simpatia por delinquentes, de explosão de criminalidade e de mobilização de manifestantes que destroem estátuas, atacam polícias, incendeiam ruas e casas. Hoje, os californianos ainda sofrem com a passagem da Proposition 47, que está, como já foi várias vezes sugerido (incluindo num artigo publicado no website do GrowSF, “The impact of Prop 47 on crime in San Francisco”, a 31 de Agosto de 2023), na origem do aumento exponencial de mortes por overdose (especialmente de metanfetamina e de cocaína) e na endemização do furto de lojas num dos estados outrora mais prestigiados dos EUA. Os homicidas, os gangsters mais mortais, os violadores e assediadores também agradecem, visto que podem ver na Califórnia um exemplo de como, à sua conduta, não é dada como resposta a privação da vida, mas nada mais do que um processo de acusação tardio e demorado que poderá não acabar em mais do que privação de liberdade durante uns meros anos. E também devem muito a Harris os teóricos e os activistas que recorrem a mentiras para tornar teorias como o “racismo sistémico” minimamente respeitáveis na sociedade americana, à custa da tranquilidade e da segurança dos cidadãos comuns da “shining city upon a hill”. Quem poderá Kamala Harris ajudar e proteger, quando for presidente dos EUA? Que influência é que alguém como ela poderá ter no resto do mundo?