1. A crítica populista à representação

Encontra-se em toda a literatura sobre movimentos populistas e, por isso, não devia constituir motivo de surpresa. Como o populismo assenta numa crítica ao mecanismo de representação, considerando que as elites políticas não representam os interesses e a vontade da população, os partidos e as figuras populistas nutrem especial carinho pela figura do referendo. Esta ferramenta permitiria aos cidadãos expressar diretamente a sua vontade e, ao líder populista, confirmar que, ele sim, é um fiel intérprete da vontade e dos interesses da população, encontrando-se, por essa razão, numa posição privilegiada para governar o país.

Usando a expressão de Margaret Canovan, o populismo relaciona-se com a democracia liberal como uma sombra permanente: como a democracia liberal se baseia em representantes que legislam em nome dos cidadãos de acordo com uma lógica de confiança (é um regime de democracia indireta), quando a confiança na representação se quebra ou fragiliza, o espaço para vozes populistas aumenta. Desta forma, o populismo tem maior ou menor relevância conforme as populações sintam que os seus interesses e vontade estão a ser representados: quando isso acontece, a expressão populista torna-se menor e pode mesmo desaparecer; quando uma parte crescente da população sente que os representantes não a estão a representar, o discurso populista ressoa e é facilmente alimentado.

O recente crescimento de forças populistas deve ser, assim, entendido como uma reação natural ao período que o antecedeu, nomeadamente à tendência tecnocrática que marcou as áreas de interligação do setor económico com o setor financeiro num mundo globalizado e as questões sociais, como a imigração, consideradas também num contexto de globalização. Face a elites tecnocráticas que forçaram um ímpeto globalista, é natural que a reação tivesse ganhado forma numa réplica populista e localista.

Tendo em conta que esta dinâmica tem sido devidamente estudada na academia, a resposta pavloviana das elites políticas, económicas e culturais ao populismo parece revelar uma confrangedora incapacidade de autocrítica. Na verdade, se o populismo resulta de uma quebra de confiança no mecanismo de representação, isso significa que ele é apenas o sintoma de um problema – pelo que vociferar contra o populismo se revela tão útil como reclamar contra a febre.

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O equilíbrio entre democracia e liberalismo é um exercício naturalmente difícil. Não podemos agarrar-nos aos mecanismos liberais e ignorar a frustração popular que resulta de sentir que a sua voz não é ouvida; e também não podemos abraçar meramente a vontade democrática e desprezar os mecanismos liberais, sob pena de perdermos a proteção garantida pelos direitos fundamentais e ficarmos sujeitos a uma tirania da maioria. Mas não conseguimos escapar a este conflito – ele resulta da própria conjugação entre os dois termos do nosso regime político: democracia e liberalismo.

Em certo sentido, o referendo foi encarado como uma espécie de compromisso entre aqueles dois termos: apesar de se tratar de um mecanismo de consulta direta da população, é admissível nos termos regulados pelas constituições dos diferentes estados, como acontece entre nós, para orientar decisões governativas ou legislativas de relevância ou como mecanismo confirmatório, após uma decisão anterior dos órgãos de soberania.

Ainda assim, os referendos são sempre fonte de polémica. Vejamos porquê.

2. O problema dos referendos

No domínio teórico, podemos considerar as críticas apresentadas ao referendo a partir de duas posições radicais, que chamaremos aqui de ultraliberal e ultrademocrática.

De acordo com a primeira posição, a democracia liberal deve assentar exclusivamente na lógica representativa, na medida em que as decisões políticas exigem uma reflexão e ponderação, que a população em geral não é capaz de fazer, e um jogo de negociação e compromisso, que o referendo não pode garantir. Apenas o jogo partidário e a experiência e o conhecimento das elites políticas permitem decisões ponderadas e adequadas, pelo que o regime democrático deve ser meramente representativo. (Foi ao abrigo desta argumentação que muitos recusaram a possibilidade de referendo à eutanásia entre nós, considerando que a complexidade do tema obriga a uma intervenção parlamentar.)

Na segunda posição encontramos o argumento ultrademocrático, que desafia os princípios liberais ao considerar que o mecanismo de representação tende a promover os interesses próprios dos representantes e é incapaz de soluções que sirvam o bem comum. As elites políticas tenderiam a confundir-se com as elites económicas e a afastar-se dos interesses da população. Uma verdadeira democracia exigiria, então, uma participação mais ativa dos cidadãos, inspirando-se no espírito dos antigos. No entanto, este grupo não está a pensar em referendos quando defende maior participação da população: o referendo é um péssimo modelo de participação, porque tende a promover a passividade das pessoas, que se limitariam a deslocar-se para responder a uma pergunta pré-determinada e sobre a qual não tiveram qualquer poder de decisão. Para além disso, o referendo abre a porta a resultados deturpados por grupos ativistas, mais mobilizados para a participação, o que afetaria a expressão real da vontade popular. Um processo de decisão mais “democrático” exigiria assembleias deliberativas, uma vez que as pessoas seriam chamadas, não apenas para expressar uma opinião em bruto, mas para participarem no próprio processo de deliberação. (O que aconteceu na República da Irlanda, levando a alterações constitucionais como a legalização do aborto, é um exemplo particularmente interessante, uma vez que a decisão foi discutida inicialmente em assembleia de cidadãos e só depois sujeita a referendo.)

Tanto a posição ultraliberal, como a posição ultrademocrática poderiam usar os mesmos exemplos históricos de Napoleão e Hitler para respaldar a sua posição de desconfiança face aos referendos.

3. O argumento antipopulista

É, contudo, possível identificar uma terceira posição, de natureza mais heterogénea, que recorre a uma argumentação mais pragmática do que teórica. De acordo com este grupo, os referendos são admissíveis, constituindo até uma ferramenta útil, desde que não sejam solicitados ou exigidos a partir de um discurso populista.

Os referendos seriam assim aceitáveis em contexto político “normal”, ou seja, quando não se verifica uma quebra de confiança nos representantes, sendo possível uma auscultação tranquila à população, com menor receio de que as pessoas decidam “coisas erradas”. Mas se o contexto político for “populista”, os referendos não são viáveis, uma vez que parte significativa da população estaria sob influência nociva das ideias populistas.

De acordo com esta posição, não se deveria referendar a saída do Reino Unido da União Europeia com a presença de forças políticas contra o projeto europeu; e não se poderia referendar políticas de imigração quando o espaço público contém narrativas contra políticas amplas de imigração. O problema é que, se recordarmos o argumento do populismo como sombra da democracia liberal, é precisamente nestes momentos que os referendos fariam mais sentido: exatamente para darem uma noção mais clara aos representantes da vontade da maioria.

Este posicionamento antipopulista deixa mesmo os seus defensores numa disposição difícil: ao recusarem debater os temas delicados, estão a reforçar a narrativa populista de que os representantes não representam os interesses da maioria. Caso contrário, porque estariam contra a consulta popular?

Mas se a sua posição parece frágil, há um fundo de verdade no argumento antipopulista: é que, muitas vezes, os partidos populistas acabam por instrumentalizar de tal forma os temas políticos difíceis, como fez o Chega com a proposta de referendo à imigração como condição para a negociação do orçamento de 2025, que esvaziam a possibilidade de se discutir com mérito e profundidade estes temas. E é por essa razão que a melhor forma de reagir a movimentos populistas não é com histeria, mas exigindo que sejam capazes de responsabilidade política.