Há uns dias, recebemos a notícia de que as principais agências de rating — Moody’s, S&P e Fitch — eram unânimes em relação à Irlanda: a dívida irlandesa é agora considerada de qualidade A. As mesmas agências são unânimes sobre Portugal: investir na nossa dívida é considerado um investimento especulativo. Ou seja, os títulos de dívida pública portuguesa são aquilo a que na gíria se chama lixo. O que nos salva é uma quarta agência, de que (quase) ninguém tinha ouvido falar até há uns anos, a DBRS, que nos mantém um nível acima do lixo.
Imagino que muitos tenham ficado com inveja da Irlanda. Mas não há motivos para isso. Na verdade, a performance da Irlanda pós-troika é semelhante à nossa. Entre 2001 e 2007 a taxa de crescimento média anual em Portugal foi de 1,06%; na Irlanda foi 5,4%. Em 2015, a taxa de crescimento terá sido de 1,5% em Portugal (ou seja, um pouco mais de 40% acima do verificado no período pré-crise) e na Irlanda terá ficado nos 7,8% (ou seja, um pouco mais de 40% acima do verificado no período pré-crise). Para 2016 é difícil perceber quais são as previsões mais razoáveis para Portugal. A última foi a do BBVA que prevê 1,4%. Para a Irlanda as previsões também apontam para uma descida em relação a 2015. Em conclusão, quer um país quer outro parecem convergir para a taxa de crescimento que tinham no período 2001-2007. Quer a Irlanda quer Portugal aparentam estar a reverter para a média do seu crescimento pré-troika.
A ser verdade este diagnóstico, a taxa de crescimento estrutural da nossa economia é a que era no período 2001-2007. Daqui, somos levados a admitir que os nossos problemas estruturais estão longe de estar resolvidos e que são, em certa medida, os mesmos que tínhamos. Este diagnóstico não é uma surpresa. Por um lado, não é um programa de ajustamento de três anos que permite alterar a estrutura económica de um país. Por outro, tal como os problemas se desenvolveram ao longo de vários governos, também a sua resolução a existir atravessará vários ciclos eleitorais. Basta lembrar que uma das principais mudanças estruturais, o aumento do peso do nosso sector exportador, tornou-se visível em 2006. Ou seja, podemos e devemos discutir se cada medida tomada é um passo na direcção certa, mas não faz sentido andar a discutir a conjuntura trimestral como se ela fosse o resultado da política económica do mês anterior. Infelizmente, os nossos problemas são mais profundos.
Num livro que vai ser apresentado hoje, da autoria de Fernando Alexandre, Pedro Bação e deste vosso escriba — Crise e Castigo, com pré-publicação aqui no Observador — discutimos aprofundadamente os desequilíbrios que se acumularam nas décadas de 80 e 90 e que levaram à longa estagnação em que vivemos desde 2001. Como seria de esperar, vários dos problemas que identificámos estão ainda por atacar. Por exemplo, o processo de privatizações que se iniciou no fim da década de 80 muitas vezes criou monopólios ou oligopólios privados, fazendo com que à onda privatizadora dos últimos 30 anos não correspondesse uma verdadeira liberalização da economia, bem pelo contrário. Algumas das últimas privatizações padeceram do mesmo mal. A entrega a um monopólio privado da gestão de todos os aeroportos portugueses é um exemplo disso. Outro exemplo foi a privatização da REN, que parece ter tido como objectivo a maximização da receita e não da eficiência económica. Promover monopólios privados é uma forma de criar sectores rentistas que serão um entrave ao crescimento. Neste sentido, as metas orçamentais de curto prazo impostas pela troika podem ter, em alguns momentos, sacrificado a eficiência económica de longo prazo.
Outro problema que está identificado é a forma como o interesse público é tantas vezes capturado por interesses privados. Infelizmente, ainda não há sinais claros de que se pretenda enfrentar este obstáculo estrutural. Basta lembrar a forma tíbia como se têm renegociado algumas das parcerias público-privadas. Ainda neste âmbito, recordemos que nos anos 90, grande parte do investimento privado e público foi canalizado para a construção e imobiliário, com poucos efeitos de longo prazo sobre a taxa de crescimento potencial portuguesa. Em parte, esse terá sido um dos motivos da ruína da banca portuguesa, que tarda em reerguer-se. Quando se decide usar fundos da Segurança Social para investir neste sector não podemos deixar de nos questionar sobre as razões da insistência nesta estratégia.
É fácil encontrar alguns erros na política económica aplicada nos anos da troika que devem ser corrigidos. Mas a estratégia não pode ser regressar a 2007. E, na verdade, observamos algumas reversões que não se entendem, como a da re-nacionalização parcial da TAP, que fica meio pública mas com gestão privada, num negócio que deixa parceiros privados contentes e contribuintes sem perceber para que serviu o seu dinheiro. Há também medidas que promoviam alguma eficiência no Estado, como o aumento da carga horária para os funcionários públicos, que são revertidas, sem no entanto se perceber o que é proposto em troca. De resto, as dificuldades encontradas para reverter esta medida mostram que o seu efeito não era irrelevante.
Sabemos que os leitores estão cansados de diagnósticos. Mas o diagnóstico que se faça da crise portuguesa não é irrelevante. Se, de facto, culpamos a troika e as suas políticas pelo baixo crescimento que temos actualmente, então políticas que estimulam a procura agregada poderão ser as correctas. Mas se consideramos que os nossos problemas são estruturais e anteriores à vinda da troika então estimular a procura é a política errada. Numa economia tão endividada, baixar a dívida deve ser prioridade, em vez de violarmos sucessivamente o pacto de estabilidade como fazemos desde 2001 (sempre com défices acima dos 3%). Com níveis de poupança tão baixos, a única forma razoável de aumentar o investimento será atrair investimento estrangeiro. Criar as condições para essa atracção deve ser uma prioridade política. A febre dos centros de decisão nacional terá de esperar uns anos. Simultaneamente, necessitamos de reformas que, passo a passo, sirvam de catalisador à mudança da estrutura da nossa economia e que a tornem mais competitiva aumentando a concorrência em diversos sectores, permitindo que os mais dinâmicos cresçam. Ainda neste sentido, reforçar a capacidade e a independência dos reguladores é essencial. Não pode haver tréguas no combate à captura do interesse público por interesses particulares.
PS. O Observador está a celebrar 2 anos de vida. Este projecto é uma pedrada no charco no sector dos media em Portugal. É com muito orgulho que dele faço parte.