Primeiro parecia uma brincadeira.

Depois um daqueles exercícios em que os estudantes de arquitectura no final do curso são desafiados a fazer livremente um projecto para preencher um buraco.

Seguidamente, um “boneco” para nos testarem a indignação e a capacidade de reacção.

Mas à medida que os dias passavam e as notícias se sucediam, ficou claro que não era um teste, um exercício ou uma brincadeira.

Era a sério, havia um projecto, com uma torre de 16 pisos e 60 metros de altura e um sem número de justificações, explicações e vantagens para abrilhantar a solução. E andavam há mais de dois anos a preparar a coisa.

Quem conhece a história urbana de Lisboa e a forma como a cidade se expandiu a partir da segunda metade do século XIX, sabe que a Almirante Reis é a avenida “pobre” dessa expansão. Iniciada por volta de 1892 foi crescendo nos 40 anos seguintes até chegar ao local onde surgiu a Praça do Areeiro (hoje Praça Francisco Sá Carneiro). É uma avenida feita com vários troços representativos de várias épocas, mas onde a paisagem urbana e a arquitectura de boa parte dos seus edifícios deixa muito a desejar.

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Mas ao contrário das avenidas “ricas” de Lisboa – o eixo das Avenidas da Liberdade, Fontes Pereira de Melo e República – a Almirante Reis não sofreu com a mesma intensidade os processos de transformação, mudança de usos e densificação que atingiram as primeiras.

Apesar da heterogeneidade arquitectónica dos seus edifícios em especial quando comparamos os mais antigos aos mais recentes, o vale da Almirante Reis apresenta uma morfologia urbana razoavelmente homogénea, com quarteirões e emparcelamentos similares, onde não existem elementos de rutura neste conjunto urbano.

Ora, o projeto agora apresentado, é uma solução totalmente dissonante da sua envolvente e desta morfologia.

Para nos “venderem” a solução lançaram mão de alguns argumentos curiosos e até insólitos.

Falam-nos da necessidade de suprimir uma “ferida urbana que tarda em ser sarada”.

Dizem-nos que estamos perante um projecto estruturante para Lisboa com uma nova oferta para a classe média.

E face à contestação no debate público realizado no passado dia 16, menorizam a torre a um “edificiozinho de 16 andares” como se fosse algo insignificante. Mas simultaneamente, ameaçam que sem a torre a cidade perderá a praça pública, qual “brinde” que nos oferecem no interior deste quarteirão.

Finalmente, tentam arrastar-nos para discutir a qualidade do projecto e o restauro da fábrica de cerveja, para a conversa do “melhor usufruto do espaço” e da integração de conceitos bioclimáticos e recorrem a expressões sonantes de uma gíria recente como “cowork” e “coliving”.

Ora, é despropositado discutir este projecto de arquitectura ou avaliar a sua qualidade. Nem tão pouco os usos propostos ou os detalhes atrás referidos. E isto não deve ser considerado demérito para os autores do projeto. Como não é este o momento para debater se as questões jurídicas e formais do Plano Diretor Municipal (PDM) ou do velho artigo 59º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) estão ou não em causa (e até estarão).

Também não é com soluções destas que alguns dos troços da Almirante Reis perderão o ar cinzento e até soturno que ganharam há muitos anos.

O que está em causa antes de qualquer outra discussão é uma opção política, em que a Câmara Municipal de Lisboa permite num ato puramente casuístico, romper a morfologia urbana do vale da Almirante Reis e autorizar a implantação de uma construção cuja volumetria é uma barbaridade e um ato de selvajaria urbanística.

Aquilo a que chamam de “edificiozinho de 16 andares” é somente uma torre que tem mais do dobro da altura de todas as construções envolventes e será o edifício mais alto de todo o eixo desta avenida.

Não sou contra a construção de torres e existem em Lisboa muitos e bons exemplos de edifícios com volumetrias superiores a este “edificiozinho”. Mas há questões de escala e de enquadramento urbano que fazem desta solução uma espécie de “prédio Coutinho”, como o que se pretende demolir em Viana do Castelo.

Ao ler o Observador no passado dia 15 de maio, retive uma frase de um dos membros do júri do projecto, o arquitecto finlandês Juhani Pallasmaa: “O projeto está muito provavelmente a antecipar a direção que o desenvolvimento urbano nesta zona de Lisboa está a tomar”.

Pasmei!

O que é assustador neste processo, é a evidência que ele abre um precedente que naturalmente, tal como sucedeu no passado noutras zonas de Lisboa, cria legítimas expectativas aos proprietários e promotores imobiliários para densificar os seus empreendimentos.

O que se pretende fazer no quarteirão da antiga fábrica da Portugália na Avenida Almirante Reis em Lisboa, faz-nos regressar a um período do urbanismo alfacinha que julgava ultrapassado há mais de 30 anos: o casuísmo e o completo desrespeito pela diversidade morfológica da cidade.

Pretender que este projecto é estruturante, porque praticará soluções acessíveis à classe média é um engano e uma mistificação que não será contratualizado em lado algum e que os promotores obviamente não poderão garantir. Mas mesmo que garantissem, então estaríamos a aceitar espatifar a cidade para em contrapartida haver umas quantas casas supostamente mais baratas.

Que forma estranha de eliminar uma “ferida urbana” em que o resultado do tratamento é um monumental abcesso.

É indecoroso transmitirem a ideia que, sem a torre, a cidade perderá uma praça pública. Com ou sem “praça”, terá que haver sempre um espaço livre para logradouro neste quarteirão. Aliás, tenho sérias dúvidas quanto à viabilidade deste tipo de praças no interior de quarteirões, que em regra por questões de segurança, acabam encerradas e entregues ao domínio privado dos condomínios.

Quando nos dizem que este projecto é estruturante e contribuirá para mudar a Almirante Reis lembrei-me daqueles programas de televisão onde uns sortudos são bafejados com a remodelação das suas casas.

É caso para dizer “Querido, estraguei a Avenida!”.

Arquitecto, presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana de 2012 a 2017