O clássico “Animal Farm”, de George Orwell, continua a ser uma obra imprescindível para compreender o funcionamento do comunismo, e em particular a forma como as elites revolucionárias concebem a sua relação com as massas. Na muito recomendável fábula, os jovens porcos intelectuais que assumem o comando da revolta dos animais pregam incessantemente o valor supremo da igualdade, mas acabam por adoptar o mandamento: “Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.”
O mandamento na sua forma final descreve na perfeição o estado de espírito de muitos intelectuais da extrema-esquerda, que invocam a necessidade de uma revolução em nome do Povo (com “P” maiúsculo), mas simultaneamente desprezam as pessoas concretas. O Povo – abstracto e impessoal – é uma entidade massificada, explorada, homogénea, heróica e ficcional de cujos genuínos interesses os intelectuais de extrema-esquerda são os únicos legítimos intérpretes. Já as pessoas concretas, que na sua esmagadora maioria não fazem parte da aristocracia revolucionária nem correspondem ao arquétipo de um integrante do Povo ficcionado, são merecedoras do mais absoluto desprezo, precisamente pelas suas características de pessoas normais.
Em Portugal, uma das mais apuradas praticantes desta abordagem é a investigadora Raquel Varela. Foi precisamente neste estado de espírito que Raquel Varela manifestou o seu desprezo relativamente a Pedro Passos Coelho “com o seu fato de alfaiate de segunda, morador suburbano” ( a este propósito vale a pena ler ou reler o que escreveram Helena Matos e Maria João Marques ). Foi também imbuída da mesma atitude que, em 2013 no decorrer de um Prós & Contras, a investigadora Raquel Varela tentou – felizmente sem sucesso – humilhar Martim Neves, um jovem de 16 anos, pelo “crime” de ser empreendedor e gerar empregos.
Os mais recentes alvos da investigadora Raquel Varela são Cristiano Ronaldo e a sua família, em especial Dolores Aveiro. Comentando uma notícia que dá conta da forma como familiares de Ronaldo celebraram a passagem de ano, Raquel Varela declara relativamente ao futebolista que “torná-lo vanguarda da cultura de massas é uma lama que um dia destes nos atinge a todos. Depois da estátua patética – que associa força e sexualidade a um falo desmesurado, este herói retratado para a posterioridade como um “animal (só) de 4 patas”, diria Freud – temos a mãe “carcacinha” e a Casa dos Segredos a ser vista da sala VIP como sinónimo de uma noite de glamour. É uma vergonha, uma piroseira, uma monstruosidade que deforma o povo deformando os seus heróis, e um mau gosto inusitado, que se passa num país que estrangula escolas de música, manda poetas emigrar, corta salários a actores, saqueia escritores com impostos, fecha teatros e passa bons filmes às 2 da manhã.”
Fazer pouco da mãe de Ronaldo e tentar humilhá-la publicamente pelos seus gostos e, indirectamente, pela sua origem social, pode parecer incongruente para alguém que se auto-proclama defensora do Povo, mas na realidade é perfeitamente consistente à luz da abordagem intelectual acima descrita: “Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.” Mais do que falta de educação, arrogância ou pedantismo, o que todos estes episódios revelam é a forma como as elites revolucionárias – os jovens porcos intelectuais de Orwell – realmente concebem a sua relação com as massas que desejam “libertar” à força da “opressão” do mercado.
Face aos exemplos apresentados e a outras intervenções públicas da investigadora Raquel Varela pode ser tentador descartá-la como apenas um caso extremo de activismo político, mas a verdade é que está longe de ser um caso raro ou excepcional. Quem conhece minimamente as Universidades portuguesas, particularmente no domínio das ciências sociais, sabe que Raquel Varela é representativa de um modo de pensar e agir com raízes e implantação profunda em Portugal. Se alguma coisa distingue a investigadora Raquel Varela, não é o seu maior grau de radicalismo, mas sim o ter um discurso mais articulado e uma imagem mais cuidada e apresentável do que muitos dos seus pares que pensam basicamente da mesma forma, mas não possuem dotes nem projecção comunicacional comparável.
Relativamente ao sofrimento e às vidas das pessoas concretas que em Portugal passam dificuldades, a Dona Dolores pode certamente proporcionar lições mais pertinentes do que a investigadora Raquel Varela, mas a forma cândida como, do alto da sua confortável posição de privilégio garantida pelo Estado, esta última manifesta publicamente o seu desprezo pelos “suburbanos” e pela “piroseira” é muito útil para compreender a verdadeira essência da extrema-esquerda e do seu desejo de poder.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa