Não está o assunto arrumado. Os desacatos na Área Metropolitana de Lisboa, durante a semana de 21 de Outubro, inspirados pela morte do fugitivo Odair Moniz, continuam a produzir aspectos reveladores da maneira como o país político vive numa fantasia, completamente impreparado para lidar com desordens desta natureza. Tiago, o motorista a que os vândalos pegaram fogo, só nesta terça-feira, dia 19, saiu da Unidade de Queimados do Hospital de Santa Maria. Longe de estar curado, vai continuar a recuperação em casa e sabe-se que os ferimentos deixarão lesões para o resto da vida. Conduzia o autocarro da última carreia, do qual saiu gritando em chamas, no Bairro da Cidade Nova, em Santo António dos Cavaleiros, concelho de Loures.
Cerca de uma semana depois, 30 de Outubro foi dia de reunião pública da câmara de Loures. Durante essa reunião, dois acontecimentos voltaram a transportar Loures para o debate nacional: em primeiro lugar, a aprovação de um documento do Chega; em segundo lugar, as declarações de Ricardo Leão, presidente da câmara, eleito pelo PS.
O documento do Chega pretendia alterar o Regulamento Municipal de Habitação de modo a permitir despejar “imediatamente” das casas municipais quem tivesse participado nos desacatos. Foi a Proposta de Deliberação 696/2024, aprovada pelos vereadores do Chega, PS e PSD. Os vereadores do PCP, naturalmente, votaram contra.
Durante o debate, Ricardo Leão defendeu “sem dó nem piedade” este despejo. E acrescentou: “É óbvio que eu não quero que um criminoso que tenha participado nestes acontecimentos, se for ele o titular do contrato de arrendamento, é para acabar e é para despejar, ponto final, parágrafo”. Palavras abençoadas, na substância e no tom. Em vez de lhe agradecer, o país político e mediático exibiu censura.
Choque, sobressalto, desfilar de bons sentimentos na televisão. Os líderes nacionais do PS declamaram “humanismo” e “decência na política”, todos eles com o mesmo argumento: era inadmissível “ceder ao populismo” e aceitar “sanções acessórias”.
No dia 6 de Novembro, António Costa desceu do assento etéreo de Bruxelas para vir assinar um artigo no Público, com mais dois dirigentes, “Em defesa da honra do PS”, contra Ricardo Leão.
Todos estes acontecimentos posteriores dão como irrelevantes as circunstâncias de Loures, um erro que nenhum jornalista se interessou por investigar. Ricardo Leão (PS) governa Loures em coligação com o PSD, depois de a ter conseguido livrar das unhas do PCP que se havia apoderado dela por décadas. A Câmara Municipal tem neste mandato quatro vereadores do PS, dois do PSD, quatro do PCP, e um do Chega. O último comunista a mandar foi Bernardino Soares, que não olhou a despesas na hora de contratar um genro de Jerónimo de Sousa para a espinhosa missão de mudar lâmpadas fundidas.
De maneira que o PCP é em Loures a oposição forte e constante a Ricardo Leão, e naturalmente favorece o estado de desordem nos bairros. Favorece, como? De vários modos, entre eles, por exemplo, opondo-se a que os regulamentos sejam aplicados. De resto, o miserável argumento das “sanções acessórias” nasceu da boca da vereadora comunista Fernanda Santos, que no próprio dia em que o documento foi aprovado tratou de explicar: “Existem situações que já estão tipificadas no regulamento municipal e um conjunto de sanções. O que aqui está é uma dupla discriminação, a pessoa já é punida judicialmente e depois também vai ser punida num direito que tem, que é o direito à habitação”. Tudo o que os ilustríssimos dirigentes nacionais do PS fizeram foi perfilhar a posição e a voz do Partido Comunista.
Por isso, o presidente da câmara de Loures respondeu agora, no mesmo jornal Público de 14 de Novembro, com um texto cujo título dizia quase tudo: “Favorece o populismo quem, conscientemente, ignora o elefante na sala”. Ricardo Leão acusava os dirigentes nacionais do PS de “enfiar a cabeça na areia quando se trata de temas mais sensíveis”. E preveniu: “O jogo do empurra de responsabilidades, em que os cidadãos não pagavam a renda acusando a câmara de não arranjar as casas ou em que a autarquia assumia não proceder a melhorias devido ao não pagamento de rendas, é passado. Essa realidade, em Loures, acabou”. Aparentemente, era outro hábito da governação comunista…
Como sabem todas as pessoas que lidam com as práticas da governação local, os regulamentos municipais de habitação já prevêem o despejo dos inquilinos que desobedecem às regras, designadamente espatifando as casas ou zonas comuns do prédio, partindo interruptores, rebentando as fechaduras e caixilharias das portas, destruindo os elevadores, usando as casas para fins ilegais, ou comportando-se de modo violento. Entre outras limitações expressas. Mas a política tem um lado de representação, que é muitíssimo importante. No fim de contas, o Chega quis dar um sinal político dizendo às pessoas “nós estamos aqui, nós vemo-vos; preocupamo-nos convosco e vamos proteger-vos” (retirar desordeiros é proteger as pessoas que vivem nas casas da câmara e não têm possibilidade de mudar de bairro). O PS e o PSD de Loures juntaram-se ao Chega e também quiseram dar o mesmo sinal.
Comunistas e dirigentes nacionais do PS só se concentraram nos bandidos. Não quiseram saber das outras pessoas que vivem nos bairros e são as primeiras vítimas destes comportamentos. A vida segue, na tranquilidade das grandes certezas. Os comunistas comportam-se assim porque são assim. E para as relíquias do Largo do Rato o “humanismo” que declamam é uma conduta abstracta, do domínio dos sentimentos, cuja única consequência prática é manter boas relações com a extrema-esquerda.