2015 foi o ano do regresso da realpolitik na análise internacional. Não que ela estivesse ausente. Mas passou a ser mais considerada – sobretudo no discurso mediático. Voltámos a ler o mundo por disputas de áreas de influência geoestratégica. Mais que questões ideológicas ou éticas, a decisão internacional voltou a ser lida como fruto do pragmatismo e do interesse nacional. A provar este mote estão a Turquia e Israel. Vejamos porquê.
Depois do ataque ao caça russo, o sultão Erdogan reagiu receoso. A memória histórica talvez o tenha ajudado, já que desde o século XVI o Império Otomano foi sempre rechaçado pelos czares. Perante esta inimizade de estimação a Turquia reaproximou-se de antigos, mas pouco consistentes, aliados. Israel foi um deles.
Desde 2002 que Ancara se tinha apartado de Telavive, ganhando proximidade a Gaza. A agenda política do actual governo sempre teve mais a ver com as pretensões islamistas e violentas do HAMAS, que com as decisões tomadas no Knesset. Este afastamento escalou durante a cimeira de Davos, em 2009. Mas teve o ponto alto depois do raid israelita ao navio turco Mavi Marmara, quando em 2010 rompeu o bloqueio naval a Gaza. Na Turquia a retórica anti-Israel tornou-se comum e aceite.
Porém, neste Dezembro, depois de conversas secretas tidas em Zurique, as relações diplomáticas dos dois países reataram – pragmatismo e proficuidade num puro volte-face cínico da realpolitik.
Ancara evita isolamento no xadrez regional, sobretudo depois intervenção russa na Síria, do DAESH, dos refugiados, ou da eterna questão curda. Telavive, prevendo já instabilidade nas fronteiras, procura algum conforto em ambiente hostil, sobretudo depois da proximidade do Irão à mão norte-americana.
Recentemente foram descobertas reservas de gás natural na costa de Israel. Para além de auto-suficiente, tornou-se também exportador. E, sabendo a costumeira dependência em relação à Rússia, utilizará este contexto como favorável à Europa, que tenta diversificar a sua fonte de gás natural. Todavia, a forma mais vantajosa de exportar o combustível fóssil para o velho continente é pela Turquia, que por sinal também precisa, mas não quer, de gasodutos russos. Israel surge assim como garante de segurança energética, mas depende geoestrategicamente da Turquia para escoar o gás.
Por outro lado, as exportações turcas para o Norte de África e para o Golfo estão a diminuir. As rotas pela Síria estão inacessíveis. No Iraque apenas uma parte do território não é controlada pelo DAESH. As taxas alfandegárias do Irão são elevadíssimas para produtos que vão para outros mercados. A rota do Canal do Suez para o Golfo foi uma opção, mas também se tornou demasiado dispendiosa e demorada. A ligação feita por navios Roll-on/Roll-off entre os portos de Mersin (Turquia) e Porto Said (Egipto) ajudaram a superar esta contingência. Contudo, a relação entre os dois países deteriorou-se com a queda do governo islamista de Mohamed Morsi, em 2013. Aos turcos resta então a ligação entre os portos de İskenderun e de Haifa, em Israel. Logo, a reconciliação dos dois países poderá tornar esta rota como um ponto de fuga das exportações turcas. Para além de ganhar em taxas portuárias, Telavive garante uma dependência geoestratégica turca.
Durante as conversações suíças, sobre o raid ao navio Mavi Marmara, Ancara colocou três condições a Israel: um pedido oficial de desculpa, a indemnização das vítimas e o levantamento do bloqueio a Gaza. A primeira foi cumprida em 2013; sobre a segunda acordou-se a criação de fundo de apoio de 20 milhões de dólares; na terceira ainda não há acordo, pois é existencial para os israelitas.
Indo ao velho Tucídides, sabemos que melhor forma de aliança é a comunhão de interesses. Mas em ambiente instável eles variam. É provável que, passada a ameaça russa, Ancara retome a agenda islamista e a posição anti-Israel (veja-se que, poucos dias depois das conversações, Erdogan encontrou-se com Khaled Meshaa, líder do HAMAS).
O cínico desespero da realpolitik também pode levar à imprudência. A longo prazo talvez Israel se esteja a tornar refém da Turquia por um gasoduto e pelo controlo portuário de uma rota comercial a prazo.
* Professor Universitário