Desde o início do Séc. XIX, essencialmente em virtude da Revolução Francesa de 1789, a pouco e pouco, apesar de períodos excepcionais de triste memória, boa parte do mundo adoptou viver com aquilo a que se chama “separação de poderes”. Simplificadamente, este princípio consagra que quem legisla, não governa e quem julga, nem legisla, nem governa. Em consequência deste princípio, temos Parlamento, Governo e Tribunais. O Parlamento, claro, tem de ser eleito por sufrágio directo, secreto e universal.

Sempre que o mundo, ou a parte dele em causa a cada momento, se vê atingido por guerras, epidemias ou catástrofes da natureza, há sempre alguém que aproveita, para por em causa estes princípios — já com dois séculos — ganhando até, temporariamente algum apoio, que advém do medo e da disposição de trocar liberdade por segurança, ainda que esta seja meramente aparente. Não reza a história que, face a uma catástrofe ou a uma epidemia, a concentração de poderes traga qualquer salvação que a separação de poderes não garanta também. E quanto à guerra, a Inglaterra e os Estados Unidos, mantiveram — com alguns condicionalismos inevitáveis — as suas instituições democráticas a funcionar durante a I e a II Guerras Mundiais e fizeram parte dos países que as venceram.

Todo o debate público — desta vez é mesmo à escala mundial — está centrado em dois temas centrais: saúde e economia. As pessoas não querem morrer da doença e também não querem morrer da cura. Ainda bem que existe debate público. Isso significa que a democracia se encontra a funcionar e as opiniões são as mais diversas. Assim, podemos dizer e publicar o que entendermos, mas temos de ouvir e ler as opiniões de que não gostamos. A democracia é isso. Quem conhecer um sistema melhor, faça o favor de o apresentar. Vejamos cada tema por si.

No que respeita à saúde, é óbvio que cabe à ciência encontrar as soluções. Ao poder político, compete garantir as condições que os cientistas necessitam para trabalhar e seguir as políticas de saúde aconselhadas pelos organismos nacionais e internacionais. E isso, bem ou menos bem — na maioria dos países, até agora, tem sido bem – consiste em seguir e fazer cumprir as recomendações dos especialistas mundiais de saúde, como fundamentalmente, é a OMS.

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Os cientistas pediram tempo e condições. Certamente, sem a ajuda de extraterrestres, haverão de encontrar a solução clínica e farmacêutica, para vencer o vírus. Nesse particular, cada cidadão, cuja actividade não seja estritamente necessária para manter a sociedade em funcionamento mínimo, deve cumprir a sua parte, na qual neste caso, até se aplica como recomendação, literalmente, que espere sentado, isto é, que fique em casa.

Já no que se refere à economia, a questão é bem mais complexa e não está na mão de cientistas. Mais uma vez, voltamos ao princípio da separação de poderes e daquilo que em democracia chamamos Lei e Direito. Mais simplesmente: as “regras do jogo”.

Voltando ao passado — o passado serve sempre para nos ensinar alguma coisa — como é sabido, os EUA, hesitaram muito antes de decidirem entrar como beligerantes na I (e também na II) guerra mundial. A guerra começou na Europa em 1914 e os americanos entraram em 1917. Os empresários americanos não sabiam de facto, se o Presidente Wilson – hesitou até à última hora — iria ou não pedir ao Congresso tal declaração de guerra ao lado dos aliados.

Alguns empresários americanos, “apostaram” que os EUA iriam mesmo entrar em guerra. Compraram a partir de 1914, todo feijão e outros alimentos similares que puderam, para os enlatar e depois vender ao exército. Se os EUA entrassem em guerra como aconteceu, ficariam ricos. Se se mantivessem neutros, ficariam com as latas de feijão numa mão e com a falência na outra.

O risco, ainda é hoje a principal regra do capitalismo, mesmo do capitalismo regulado.

O Estado pode e deve, nestas circunstâncias excepcionais de pandemia, ajudar a manter as empresas e o emprego, se necessário através da entrega directa de dinheiro para salários. Dinheiro sem retorno. Sem sombra de dúvida, que deve.

Mas a aposta na economia que vamos ter, após a pandemia, tem de ser dos empresários. Da sua argucia e talento.  Quem escolher bem, ficará para o futuro. Quem escolher mal, fica pelo caminho. O imobiliário vai ressurgir? Com um novo tipo de habitação? A indústria do entretenimento, fora do digital, vai sobreviver? As pessoas continuarão a encher restaurantes?  As escolhas alimentares serão as mesmas? Quais as consequências na procura, das novas condições de teletrabalho, que veio para ficar? Voltará a haver turismo de massa? As pessoas viajarão tanto? Os hábitos culturais e sociais serão os mesmos da pré-pandemia? Quanto tempo será necessário para a retoma da procura? Quais os sectores em mais vamos exportar? Os tradicionais ou terão de pensar noutros?

Não podem os empresários pedir ao Estado que os ajude a ganhar dinheiro. Isso compete aos empresários. Peçam sim, se tiverem êxito, para pagar menos impostos sobre a riqueza que criam. Isso é compreensível, mas, já agora, criem a riqueza primeiro. Não passem para o Estado, aquilo que depende da vossa iniciativa ou que o Estado pague o resultado das vossas más escolhas, da vossa infelicidade ou incompetência.

Face à crise em que já estamos, a desigualdade entre os cidadãos que vem de trás é difícil de suprir. Mas a partir do momento em que a crise está declarada, a intervenção do Estado tem de se pautar por regras de estrita igualdade. Entidades a quem o Estado entregue dinheiro, que é de todos, têm de cumprir estritamente as mesmas regras.

Como exemplo inadmissível, é a notícia que a TAP, que irá ser objecto de injeção de dinheiros públicos, recorrendo ao lay-off subsidiado, pretenderá pagar aos seus empregados, como complemento, mais do que o limite da retribuição admissível pela Segurança Social para esta situação, que é 1.905,00 euros mensais. A proporção e o limite tem de ser igual para todos. Seja comandante ou empregada de limpeza. Se a TAP pretende um regime de excepção para os seus empregados, tem bom remédio. Os acionistas privados que paguem e não recorrem ao lay-off subsidiado.

O coronavírus que todos contagia por igual, ricos e pobres, novos e idosos, brancos, orientais e negros, homens e mulheres, não pode – o nosso inimigo, não pode — ser mais democrático, que nós próprios.