Voltou a passar relativamente despercebida entre nós a data de 25 de Novembro, 47 anos após a derrota da tentativa de golpe de estado comunista. Convém recordar que esta tentativa de golpe de estado visava restaurar entre nós uma ditadura — ainda que de sinal contrário à que havia sido apeada no 25 de Abril de 1974. E convém igualmente recordar que os comunistas queriam restaurar uma ditadura, desta vez em nome da chamada “democracia popular”, contra a democracia liberal e parlamentar, a que chamavam “capitalista”.
Por que motivo continua o 25 de Novembro a ser menosprezado entre nós é um tema que merece reflexão. É particularmente intrigante que seja menosprezado pela esquerda democrática do Partido Socialista, cujo fundador, Mário Soares, liderou na época a vasta coligação pluralista, da esquerda e da direita democráticas, contra a ameaça comunista. Mas não creio que essa reflexão deva ser transformada numa diatribe da chamada direita contra a chamada esquerda— o que seria uma espécie de repetição, agora com sinal contrário, das diatribes dos comunistas contra a direita e contra a democracia pluralista que, porque necessariamente inclui direita e esquerda democráticas, os comunistas acusavam (e ainda acusam) de ser “uma vasta coligação burguesa, capitalista e imperialista” (e que, na América do Sul, dizem-me que designam por “Centrão”).
Um olhar a meu ver mais estimulante consistiria em indagar o que justificou na era moderna — em certos sectores da esquerda, bem como em certos sectores da direita — a defesa de regimes absolutistas ou ditatoriais em nome do povo. No caso português, o fenómeno foi particularmente intrigante, dado que tivemos uma I República autoritária em nome da esquerda, a seguir um Estado Novo autoritário em nome da direita e depois o autoritarismo do PREC de novo em nome da esquerda — e todos igualmente em nome do chamado “povo”.
Não é certamente aqui o lugar para uma detalhada reflexão académica sobre o tema. Mas talvez me seja permitido sugerir que uma investigação sobre o tema teria invariavelmente de recuar até à revolução francesa de 1789 e aos seus legados intelectuais — não só entre a esquerda revolucionária, mas também entre a direita contra-revolucionária.
Dois autores seriam incontornáveis num estudo desse tipo: Edmund Burke (1729-1797) e Alexis de Tocqueville (1805-1859). [Ambos fazem parte, receio ter de reconhecer, dos programas de Licenciatura, Mestrado e Doutoramento em Ciência Política e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa].
Edmund Burke foi um deputado liberal (Whig) britânico que se atreveu a defender em pleno Parlamento a revolta dos colonos americanos, argumentando que estes estavam a defender as “ancestrais liberdades inglesas” — que remontavam à Magna Carta de 1215 e tinham sido reafirmadas na inglesa “revolução relutante” de 1688-89. Também é interessante notar que, embora em plena guerra colonial de Londres contra a América, ninguém em Londres se lembrou de o mandar prender por estar a defender os rebeldes americanos.
A surpresa final veio com a crítica veemente do liberal Edmund Burke à revolução francesa de 1789 — que a generalidade dos liberais no início tendia a apoiar, julgando tratar-se de uma revolução democrática e liberal. Mas a crítica de Burke não foi em defesa do chamado Antigo Regime, mas em defesa da liberdade ordeira sob a lei.
Alexis de Tocqueville foi um aristocrata liberal francês cuja família foi perseguida pela revolução de 1789. Mas, em vez de reagir defendendo uma contra-revolução ou o regresso ao Antigo Regime, Tocqueville condenou o que chamou de “eterno conflito entre Antigo Regime e Revolução” ou a “perpétua oscilação entre a servidão e o abuso”. Considerou que a revolução americana de 1776 e a revolução francesa de 1789 exprimiam o advento da “era da igualdade ou da democracia” — que considerou incontornável no Ocidente cristão. Mas alertou enfaticamente para que esta “era da igualdade ou da democracia” poderia ser liberal ou despótica.
Na experiência da democracia na América, Tocqueville encontrou vários ingredientes que garantiam a natureza liberal da democracia americana. Entre outros, vale a pena recordar brevemente (1) a forte limitação do poder do estado pela Constituição— com um poderoso sistema de separação de poderes e de freios e contrapesos; (2) a proteção constitucional garantida à iniciativa privada e ao pluralismo da sociedade civil, ou à “arte de associação”, espontânea e descentralizada; (3) bem como a defesa intransigente da liberdade de expressão, em primeiro lugar da liberdade religiosa.
Tocqueville sublinhou que aqueles preceitos constitucionais não eram exclusivos de uma família política contra outra — pelo contrário, eram comuns às diferentes famílias políticas, mais à direita ou mais à esquerda. E que este respeito comum pelas regras do jogo constitucional garantia a concorrência e alternância pacíficas entre partidos rivais, fazendo da democracia americana uma democracia liberal e não despótica, uma democracia tranquila e não revolucionária nem contra-revolucionária. (A guerra civil de 1861-1865 terá sido a excepção que confirma a regra, dado que ocorreu precisamente em torno de princípios constitucionais).
Em suma, e para concluir um texto que já vai longo, creio que é inteiramente legítimo argumentar que o 25 de Novembro de 1975 repôs e garantiu o respeito pela promessa de uma democracia liberal — nem de esquerda nem de direita, mas de ambas — anunciada pelo 25 de Abril de 1974.