“Churchill certamente não seria hoje popular nos círculos politicamente correctos, mas também não nos da direita radical — como aliás também não foi no seu tempo”, lembrou o historiador de Cambridge David Reynolds, na Palestra Memorial Winston Churchill do IEP-UCP na passada quarta-feira, no Palácio da Cidadela de Cascais. O evento anual, que em dois anos consecutivos teve o alto patrocínio de dois Presidentes da República, visa recordar o líder da resistência europeia à ofensiva de Hitler, inicialmente aliado a Staline, a quem todos devemos a liberdade.
David Reynolds, juntamente com Kirsty Hayes, Embaixadora do Reino Unido, bem como Miguel Albuquerque, Presidente do Governo regional da Madeira, e Carlos Carreiras, Presidente da Câmara de Cascais, recordaram alguns aspectos divertidos do velho estadista: vangloriava-se de comer carne e apreciar bom vinho, whisky e champagne (ao contrário de Hitler, que era vegetariano e abstémio); ganhou muito dinheiro com os cerca de 40 livros que publicou em vida, além de incontáveis artigos na imprensa (muito mais do que com os salários de 64 anos de deputado); criticava impostos altos sobre o rendimento e sobre os chamados “ricos”, embora tivesse sido promotor de profundas reformas sociais a favor dos mais desfavorecidos; e era ostensivamente elitista nos seus gostos pessoais: “sou um homem de gostos simples; satisfaço-me facilmente com o melhor”, gostava de dizer.
Como sublinharam aqueles oradores na palestra de quarta-feira, estes são aspectos divertidos de algo mais fundamental: Churchill denunciou desde o início os fanatismos de sinal contrário que ensombraram o século XX — o comunismo (a que sempre chamou bolchevismo) e o nazismo. Denunciou asperamente o ataque mútuo do bolchevismo e do nazismo contra a religião cristã e contra os judeus (os “nossos irmãos mais velhos”, como dizia o Papa João Paulo II). Sempre defendeu sem compromisso a democracia parlamentar — ao mesmo tempo que condenava os populismos em nome das “massas” contra as “elites”, (uma tecla que hoje voltou a ser moda, tanto à esquerda como à direita); e defendia a tradição reformista da aristocrática monarquia constitucional britânica.
Como podemos definir politicamente o posicionamento de Churchill? Na época tribal em que estamos de novo a entrar — à semelhança do que aconteceu nos anos de 1930 — é certamente forte a tentação de o definir como um “outsider”.
Churchill — que foi até certo ponto “de esquerda” entre 1904 e 1924, na bancada liberal — nunca foi propriamente de esquerda no sentido igualitário e estatista do termo. E, embora tenha sido basicamente um conservador — entre 1900 e 1904, depois de novo entre 1924 e 1964, quando saiu do Parlamento poucos meses antes de morrer, em Janeiro de 1965 — foi muitas vezes um crítico acérrimo dos governos da sua bancada conservadora, sobretudo entre 1929 e 1939, os anos do “apaziguamento” com Hitler.
Num sentido mais profundo, no entanto, Churchill não era seguramente um “outsider”. Não era um rebelde, nem um revolucionário, nem um contra-revolucionário, nem sequer um inovador. “Devemos precaver-nos contra as inovações desnecessárias, sobretudo quando guiadas pela lógica”, gostava de repetir.
Em meu entender, como tenho argumentado com mais detalhe em outras ocasiões, Churchill era, e tentava premeditadamente ser, um orgulhoso herdeiro de uma velha e nobre tradição: a tradição europeia e ocidental da liberdade sob a lei, para a qual ele acreditava que os povos de língua inglesa tinham dado uma significativa contribuição. Uma imagem sugestiva desse credo fundamental de Churchill pode ser encontrada nesta sua passagem sobre Sir Francis Mowatt, um alto funcionário público que servira tanto Gladstone como Disraeli, os dois líderes rivais (um liberal, outro conservador) da Inglaterra vitoriana:
“Ele representava a completa visão vitoriana triunfante da economia e das finanças: estrita parcimónia, contabilidade exacta; comércio livre, independentemente do que o resto do mundo pudesse fazer; governo suave e firme; evitar as guerras; apenas pagamento das dívidas, redução dos impostos e reforço da poupança; quanto ao resto — ao comércio, indústria, agricultura, vida social — ‘laissez-faire e laissez-aller’. Deixemos que o Governo se reduza e reduza as suas exigências sobre o público ao mínimo; deixemos que a nação viva de si própria, deixemos que a organização social e industrial tome o curso que quiser, sujeita às leis da nação e aos Dez Mandamentos. Deixemos que o dinheiro frutifique nos bolsos das pessoas.”