1O Orçamento de Estado para 2020 prevê uma despesa de cerca de 23.500 milhões de euros para pessoal e 11.500 milhões de euros para custos intermédios; cerca de 35.000 milhões de euros, portanto, para o funcionamento da máquina do Estado. Considerando as receitas – basicamente impostos e taxas – na ordem dos 95.000 milhões de euros, estamos a falar de 37% da receita arrecadada. Se lhe juntarmos os 40.000 milhões de prestações sociais (42%) temos cerca de 80% da receita.
Num tempo em que os portugueses suportam a maior carga fiscal da história recente e onde as notícias sobre a falência dos serviços públicos proliferam, e a erosão da autoridade do Estado – sem ser na função da cobrança – se agudiza, torna-se ainda mais urgente o que já quase se transformou numa anedota da política portuguesa: a reforma da Administração Pública.
Infelizmente os “debates”, as “negociações” e sobretudo as greves à sexta-feira, como a do passado dia 31, parecem aos olhos do público centrar-se quase exclusivamente em aumentos salariais, mas o problema está longe de se resumir exclusivamente a dinheiro e a salários; trata-se sobretudo de um problema de gestão e de política. E é uma pena que o movimento sindical em Portugal seja tão indigente. Digo de gestão para ultrapassar as práticas arcaicas e burocráticas, mais dadas ao “controlo” que à accountability, que amarram os gestores públicos, penalizam os trabalhadores, comprometem a eficácia, e tornam impossível a eficiência. E digo de política para assegurar a convergência dos principais partidos com experiência governativa, visando assegurar a estabilidade no decurso da reforma e uma avaliação séria e independente durante e no final da mesma.
Já aqui falei da necessidade de combater o gigantismo do Estado e de combater a imprevisibilidade e a ambiguidade nas suas regras de gestão. Mas para que isto seja possível, quem tiver a responsabilidade de levar a cabo esta reforma deve, de forma prudente, ultrapassar preconceitos (teses e antíteses) que minam o debate; e quiçá, daí, formular sínteses virtuosas que suplantem constrangimentos estruturais de fundo.
Dos funcionários públicos que são uns incompetentes (tese), aos serviços públicos que são de excelência (antítese). Da Administração Pública que deve ser gerida com desconfiança, porque aquilo está sem controlo (tese), à confiança total, porque o Estado é o garante do rigor e da moral (antítese). Do Estado que deve ser mínimo, limitado à regulação (tese), ao Estado presente em tudo, com máxima operacionalização (antítese). Várias são as verdades desmentidas a olho nu.
Nem os funcionários públicos são todos incompetentes, nem os trabalhadores do sector privado são todos competentes. Nem os serviços públicos são todos modelos de virtudes, sustentáveis e pertinentes, como também não é verdade o seu contrário. A Administração Pública, naquilo que o Estado entender ser a sua missão, deve criar condições de gestão e motivação, que permita que alguns modelos de excelência possam ser replicados e/ou mantidos. Para isso não pode ter um sistema de avaliação (SIADAP) condicionado à partida, inconsequente à chegada, e com ciclos tão dilatados temporalmente em que nenhuma aprendizagem ou correcção de desempenho é possível. Os trabalhadores em funções públicas devem ser cabalmente recompensados pelo mérito e inequivocamente penalizados pela sua ausência; e têm de ter feedback útil e em tempo útil.
As premissas da preguiça, da incompetência e da ineficácia dos trabalhadores em funções públicas, e a acção política em conformidade com essas premissas, não são justas e não são inteligentes. Mas a inimputabilidade no exercício dessas mesmas funções também não. Nem a desconfiança como ponto de partida, nem a confiança sem controlo como prática de gestão podem ser elementos da gestão pública.
Há que contratualizar rigorosamente com a gestão de topo dos organismos os objetivos e os recursos disponíveis para o atingimento dos primeiros e para a gestão racional dos segundos. E depois sindicar publicamente os resultados. Todas as interações tutelares sequentes – de controlo quase quotidiano – devem ser reduzidas o mais possível. Um modelo desta natureza exige não só gestores públicos competentes, comprometidos com o serviço público, alinhados e conhecedores das regras da gestão pública e dos negócios que estão a gerir, como exige também políticos mais competentes e informados sobre os serviços e as suas vocações no quadro dos seus ministérios. De resto, a questão do recrutamento de dirigentes merece urgentemente séria reflexão, não só o dos dirigentes superiores a cargo da CRESAP, mas também o dos dirigentes intermédios a cargo dos serviços.
Esta contratualização começa, desde logo, com a preparação de cartas de missão menos vagas e mais objectivas. E isto como prioridade máxima para os gabinetes governamentais. A tradução em objectivos mensuráveis, exequíveis, sindicáveis, coerentes com a missão dos organismos públicos e alinhados com os programas de Governo deverá ser tarefa prioritária – também ela passível de escrutínio público – para os governantes. No fundo, um Planeamento – encadeado e em lato senso – mais como instrumento útil de gestão e menos como formalidade administrativa.
Também no domínio da assumpção de despesa, em fase pré-contratual, ou nos processos de recrutamento de recursos humanos, a tramitação procedimental tem de ser mais curta e mais célere; dentro de princípios pré-acordados com a tutela, inscritos em orçamento e em plano de actividades. A proliferação de pareceres prévios, em cima de pareceres prévios, todos com uma óptima justificação, têm vindo a arrastar penosamente a Administração Pública, de boa ideia em boa ideia, até à sua quase paralisação.
Por outro lado, o Estado não tem de ser mínimo, nem pode ser máximo. O Estado deverá ter a máxima racionalidade, para cumprir adequadamente as suas funções; exatamente as funções que não pode deixar de ter e exactamente aquelas que, seriamente, resultarem de um pacto de regime. Querer estar em todo o lado, e quando escasseiam recursos cortar em todo o lado indiscriminadamente, é não ter coragem para abandonar o que deve ser abandonado e não ter a competência para preservar o que deve ser preservado.
Nas funções em que o Estado decidir ficar, deve dignificar o trabalho aí levado a cabo e fortalecer a autoridade dos seus executantes. Promover, activa ou passivamente, a erosão dessa autoridade é banalizar a função pública. Mais: só o reconhecimento da autoridade e do prestígio do desempenho das funções públicas, permite limitar essa mesma autoridade e garantir o respeito pelos cidadãos e empresas, evitando o uso abusivo do poder por parte dos detentores de cargos públicos. É nesse sentido que devemos ter menos Estado, mas melhor, mais forte e mais competente Estado.
Só após a resolução destes aspectos estruturais, as medidas de modernização administrativa tão em voga poderão surtir o efeito desejado.
Em síntese, a protecção das liberdades, a segurança e a ordem pública, a justiça e o combate à corrupção e a protecção dos mais vulneráveis, só para dar alguns exemplos, não se faz sem uma Administração Pública qualificada, motivada, dotada de recursos, respeitada e com um enquadramento legislativo favorável.
Há, portanto, 35 mil milhões de razões para reformar a Administração Pública e mais uma: a necessidade de assegurar um serviço público de qualidade, alicerçado na autoridade do Estado; para garantir a sua sustentabilidade e legitimidade futura.