Se havia dúvidas quanto ao desfecho dos trabalhos da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, o relatório final produzido faz-nos acreditar que é possível desvendar – mesmo quando se trata de estruturas muito reservadas, como são as organizações religiosas, independentemente do culto que professam – práticas abjetas de abuso e de exploração de crianças. Como, aliás, também existem práticas idênticas em adultos, embora a sociedade civil ainda não esteja preparada para o admitir.

Com efeito, quando se lê os depoimentos das vítimas, toma-se plena consciência dos níveis de perversão e de decadência moral a que se chegou. As pessoas em quem se devia confiar plenamente feriram física, espiritual e moralmente quem nelas confiou, logrando envenenar toda e qualquer relação humana, e pôr em causa o mistério sagrado da vinculação a Cristo. A confiança constitui, um fator-chave nas relações de carácter espiritual, sobretudo quando se trata de questões que envolvem a Igreja e a sua jerarquia (hierarquia eclesiástica).

A confiança é essencial para o desenvolvimento psicoafectivo do Homem. Necessitamos de confiança porque somos vulneráveis, somos frágeis ,e, porque nem sempre temos as respostas certas para as nossas dúvidas. Se fossemos perfeitos e todo-poderosos não precisávamos de crer em nada. Ao sermos imperfeitos necessitamos de acreditar, não obstante corrermos o risco de sermos traídos. Contudo, quem acolhe a confiança de outrem, torna-se moralmente obrigado a assumir o compromisso de cuidar, de proteger.

A Igreja Católica, historicamente, é liderada pelo sexo masculino. As mulheres ocupam-se em geral de funções piedosas, caso das freiras, ou de voluntariados vários se forem leigas. Embora não gozem de poder decisório, as mulheres, na estrutura eclesial, chegam a um efetivo de 65 por cento. São elas que trabalham na retaguarda para que a instituição funcione, cujo lado mais visível é dominado por sacerdotes, professores, teólogos, burocratas, etc.

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Este aparente contrassenso radica na própria Antiguidade Clássica, em que a mãe, que cria e cuida, pouco manda. Esta visão milenar da «gens» (família), continua a ser a base da religião católica (e de todas as religiões monoteístas), não surpreendendo, por isso, que se verifiquem abusos, quase sempre encapotados de obediência. E a obediência é recompensada de maneira positiva, ao contrário da recalcitrância, que é sempre mal vista e suscetível de provocar exclusões. Quem exerce a autoridade tem os poderes de castigar ou de favorecer. Assim, uma figura de autoridade poderá sempre abusar do poder que tem, a fim de alcançar um determinado benefício por parte do seu subordinado.

Se a figura de autoridade tiver uma visão teológica, cósmica ou ideológica da vida, tal poderá significar que se encontra no patamar mais elevado para manipular os outros. Não raro, as instruções que são dadas para a prática de atos cruéis têm origem no cumprimento de ordens de cariz disciplinar, doutrinal ou regulamentar.

O enorme poder de que desfruta, por exemplo, o Sumo Pontífice, os bispos ou os purpurados, deu lugar à Cúria Vaticana. Este organismo constitui o núcleo central que toma todas as decisões, sendo o Santo Padre o rosto visível da instituição e o detentor da férula papal, símbolo da autoridade.

O espírito do Código de Direito Canónico, em casos de abuso, centra-se exclusivamente no agressor, e em salvaguardar a sacralidade dos juramentos, fazendo de invisível a vítima e dando prioridade em evitar o escândalo, face ao esclarecimento da verdade, ao reconhecimento das iniquidades ou à reparação dos danos. A estratégia de autoproteção da Igreja, evitando ou mesmo não querendo expulsar os sacerdotes abusadores, tornou-se um fracasso, tanto na hora de evitar a repetição de condutas reprováveis por parte da jerarquia, como em responder, de forma justa e adequada, às necessidades das vítimas.

Os bispos preocuparam-se em diminuir o impacto dos escândalos, a fim de defenderem a Igreja, pouco se preocupando com os traumatismos e necessidades das vítimas. O receio de se verem envolvidos em processos judiciais, fez com que muitos deles adotassem comportamentos agressivos ou de indiferença, com a intenção de fugirem ao pagamento das devidas indeminizações, o que afetaria significativamente as possibilidades de manterem as numerosas organizações eclesiais que administram (associações, instituições, movimentos, obras, etc.). O «Anuário Católico» identifica qualquer coisa como oitenta e oito instituições no género em Portugal.

Muitas resistências, muito corporativismo, muito protecionismo, e uma enorme desconsideração – para não dizer desamor – pelas vítimas e pelo esclarecimento da verdade. Uma Igreja que não escuta, que não entende e que só pensa em si própria, com inconfessáveis intuitos de ocultação, é uma Igreja que não é de Cristo e que vive paredes-meias com o pecado.

Reparar os escândalos passa, inquestionavelmente, por reparar os danos causados às vítimas, assumindo a Igreja, sem ambiguidades, todas as suas responsabilidades, enquanto comunidade, perante aqueles que não soube proteger ou que não se preocupou em cuidar. Significa isto, indemnizar as suas vítimas.

E, claro, deixar de continuar a proteger os agressores que vivem no seu seio, oferendo-lhes outro destino, atirando-os para longe, despachando-os para outra paróquia ou, de acordo com a gravidade dos casos, expatriá-los mesmo, até que passe a tormenta. Só que a tormenta dos abusos sexuais não passa, morre com as vítimas. Por esta e por uma infinidade de outras gravíssimas razões, a Igreja Católica Apostólica Romana tem mesmo de se reinventar para sobreviver.