Para grande frustração da gente woke, a questão das reparações às ex-colónias, Brasil incluído, não floresceu no nosso país. Há dias a jornalista do Público, Lucinda Canelas fez-se eco dessa frustração ao escrever que o debate sobre esse assunto “foi sol de pouca dura” e que “resultou, pelo menos até agora, numa mão cheia de (quase) nada”. A sua frustração é, aliás, dupla, porque os supostos exemplos vindos de fora também não frutificaram. “Que efeitos produziu o relatório Macron nas políticas culturais e nas instituições portuguesas?”, perguntou e lamentou, exasperada. Mas eu julgo que esta jornalista, que confunde reparações com uma eventual restituição de certas peças museológicas — sendo essa, aliás, a única coisa que decorre do chamado relatório Macron —, está redondamente enganada. O debate sobre reparações, que já dura há quase oito anos no nosso país, resultou até agora em várias coisas, desde logo em centenas ou milhares de mãos cheias da rejeição dos portugueses às ideias de reparação e de flagelação, auto-punitiva, da nossa história. Ainda há quinze dias, quando foi dada posse na Assembleia da República à presidente da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial, José Pedro Aguiar-Branco sublinhou que o racismo deve ser combatido agora “e não no passado a discutir a História e as suas vicissitudes, ou a julgar os séculos antigos à luz dos critérios do presente”.

Tem toda a razão e reflete aquilo que é o sentimento geral da nossa população. Não obstante os woke insistem na exigência de reparações históricas. É verdade que há os que apontam os seus esforços à resolução das causas próximas das problemáticas do presente, como sejam, entre outras, a pobreza e os elementos de entrave na ascensão de pessoas negras nas escalas social e profissional. Para essas pessoas — Paula Cardoso, por exemplo —, a palavra reparação parece implicar a ideia de correcção de injustiças ou desigualdades concretas do nosso quotidiano. Porém, a maioria dos activistas woke que se têm pronunciado no espaço público tem outro enfoque e quer corrigir as desigualdades do presente exigindo reparações pelo passado, insistindo em que Portugal peça desculpa por violências há muito ocorridas, que mude os programas da disciplina de História para deixar de dar tanto destaque aos Descobrimentos, que remova estátuas de vultos de algum modo ligados ao passado colonial e que deite abaixo monumentos evocativos desse passado. Estes últimos anos têm revelado que os activistas afrodescendentes e seus aliados optaram por apontar mil dedos acusatórios ao português branco, e por envolver as suas reivindicações num manto de acusações históricas.

Durante algum tempo pensei que essa abordagem fosse um involuntário erro estratégico pois complicava aquilo que seria mais simples e alcançável se os activistas se tivessem focado preferencialmente no presente. E complicava, em primeiro lugar, porque estava bem de ver que o desejo de envolver todo o passado colonial português num registo culpabilizante, irritaria e suscitaria a oposição de muita gente que, de outro modo, poderia ter ficado numa posição de neutralidade ou ter, até, simpatizado com esses activistas e com as suas causas. E, em segundo lugar, e pior, porque ao fazerem finca pé numa leitura da História parcial, obviamente míope e errada, e que poderia ser, como tem sido, demolida ou fortemente contestada, os woke davam o flanco a ataques por esse lado e fragilizavam as suas causas. Foi só nos últimos anos que percebi que havia e há outra coisa — os reivindicantes não dão ponto sem nó — e que, longe de ser um erro estratégico ou um tiro no pé, pode ser uma jogada de xeque-mate, caso essa jogada resulte.

Senão vejamos: os activistas querem que o Estado português aceite e assuma a culpa por factos passados, que eram então, comuns e geralmente permitidos — o tráfico negreiro, a escravidão, o trabalho forçado — e que já foram, há muito, ilegalizados e terminados por vontade desse mesmo Estado português ao abrigo das leis que então aprovou. Mas os activistas precisam dessa assunção pública e formal de culpa e que Portugal aceite fazer reparações, e acham que têm direito a elas não pelo seu trabalho nem pelo seu mérito, não por razões de carência ou de necessidade, mas pelos sofrimentos dos seus antepassados. É claro que, salvo raríssimas excepções, estas pessoas que querem reparações pelo tráfico de escravos ou pela escravidão não descendem das gentes que fizeram a dramática viagem nos navios negreiros ou que penaram no trabalho árduo e perigoso de um engenho açucareiro. Esses estão no Brasil, mas nenhum activista deixa que essas minudências da verdade histórica venham atrapalhar o seu activismo e as suas metas.

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Por isso, fazendo tábua rasa da História, exigem que tudo aquilo que venham eventualmente a obter — quotas especiais de acesso às universidades, devolução de peças museológicas, etc. — seja entendido como uma reparação histórica. Porquê essa exigência? Para que esses ganhos de causa não possam ser anulados. O ancoramento das suas reivindicações na História será a garantia de conquistas irreversíveis porque a História, entendida aqui no sentido de factos passados, estará lá sempre, perpetuamente, a justificá-las e a avalizá-las. A não ser assim, seria tão só uma ajuda, um apoio, uma assistência, que uma vez cumprida a sua função, poderia ser unilateralmente terminada. Se não estivesse ligada à História e ao reconhecimento explícito de supostos crimes e pecados, e da necessidade e vontade de os redimir, seria possível retirar-lhes legitimação sempre que os governos e as concepções políticas mudassem. Mais. Se fosse entendido como assistencialismo haveria sempre quem dissesse que os negros viviam de subsídios, que não sabiam singrar sem ajudas ou que teriam mais vantagens e apoios do que a população branca. Com a reparação histórica nada disso aconteceria porque a História remete para tempos idos e esses são imutáveis. Ou seja, a ideia de reparação histórica é, para os activistas, o equivalente a um aval bancário perpétuo, algo que teria o mesmo valor que uma norma sacralizada, não alterável nem revogável.

É essa a razão profunda pela qual os activistas woke precisam de culpabilizar e responsabilizar Portugal e os portugueses de forma a que a nossa população e os nossos políticos se sintam compelidos a aceitar um programa desses. Se conseguirem levar a sua avante, darão um nó que não se desata, ou seja, um nó cego, e obterão uma vitória total e irreversível, tanto no plano da realidade actual como no da memória. Por outras palavras, conseguirão o jackpot da política e da História.

Eu não tenho dúvidas de que continuam a tentar esse jackpot. No passado mês de Abril, a questão das reparações, para a qual venho a chamar a atenção desde 2017, foi reactivada, de forma insólita e com estrépito, por Marcelo Rebelo de Sousa. A esquerda reparacionista, que estava algo murcha, aproveitou essa inesperada ajuda do presidente, ganhou ânimo e procurou, depois, avivar a chama para manter o assunto na ordem do dia. Em conformidade, o historiador de extrema-esquerda Luís Trindade veio dizer à Lusa que as reparações eram necessárias para pacificar as relações entre países (como se essas relações não fossem já de si pacíficas), e o socialista Ascenso Simões dirigiu, no Expresso, uma carta aberta aos seus camaradas do PS incentivando-os a, entre outras coisas, pensarem a sério “num ponderado processo de reparação (às nossas antigas colónias)”. Posteriormente, com o passar dos meses, o tema das reparações voltou a perder visibilidade, mas os que o propõem continuam a mover-se. Ainda que o evento não tivesse chamado a atenção da generalidade dos jornais e das televisões, no passado mês de Setembro o Bloco de Esquerda promoveu a audição na Assembleia da República de supostos “especialistas” — na verdade sobretudo académicos e/ou activistas há muito conotados com a agenda woke — para falarem sobre o tema “Libertar Portugal do colonialismo: reparações e políticas públicas”. E há dias, como referi atrás, a jornalista do Público Lucinda Canelas veio lamentar que nada tivesse avançado em direcção à meta das reparações.

Ou seja, a esquerda woke vai continuar a querer dar esse nó e eu gostaria que os portugueses percebessem que se trata — insisto — de um nó cego. Para além das objecções de natureza lógica e histórica, que já abordei por diversas vezes, para além, também, dos exorbitantes montantes envolvidos — só ao Brasil os reparacionistas alegam que Portugal deveria 20 biliões de dólares —, as reparações, assentando numa explícita ou implícita assunção de culpa por actos ou omissões de antepassados nossos, têm a implicação de serem perpétuas e irreversíveis. Por essa razão eu aconselharia os meus concidadãos a pensarem seriamente nisso, e por esse motivo as recentes palavras de José Pedro Aguiar-Branco, que citei na parte inicial deste artigo, me parecem tão importantes, ajustadas e oportunas. Ajudar e apoiar os nossos concidadãos afrodescendentes que, entre nós, disso necessitam, e lutar para que existam condições de igualdade e de justiça na nossa sociedade? Claro que sim. Reparações pelo passado remoto? Nunca!