Ao longo destes sete anos de debate público exigido pela esquerda woke para promover a ideia de reparações — o seu confessado objectivo político — os portugueses ficaram a conhecer muita coisa sobre o tráfico transatlântico de escravos. Tomaram consciência de alguns dos seus horrores; ficaram sabedores da sua dimensão total (12,5 milhões de pessoas) e da parte portuguesa nesse total (4,5 milhões de pessoas, e não 6 milhões como os activistas e os distraídos querem fazer crer); souberam de onde partiam os navios negreiros (apenas 4% de Lisboa, mas 37% de portos brasileiros, 31% de cidades inglesas, etc.). Deram-se, também, conta de que o tráfico transatlântico não foi o único nem sequer o primeiro a transportar milhões de pessoas negras escravizadas a largas distâncias, muitas vezes para fora do próprio continente. De facto, quando os navegadores portugueses passaram o Bojador e chegaram às costas da Senegâmbia, já os traficantes de escravos muçulmanos haviam comprado e transportado para o mundo árabe 5,7 milhões de pessoas negras. Ficaram a saber, ainda, que foram os ocidentais que usando as suas marinhas de guerra, as suas leis, a sua diplomacia e a sua pressão política puseram fim a um odioso negócio que vinha, em várias modalidades, de tempos imemoriais.

Sabemos tudo isso e muitas coisas mais, mas há algo que apesar de dito e redito os activistas woke sistematicamente esquecem. Ou melhor, nem é tanto o esquecer, é mais o recusar-se a tomar conhecimento do assunto, a aceitá-lo e a integrá-lo na compreensão deste processo histórico especifico. A que me refiro? Ao facto de o tráfico transatlântico de escravos ter sido, quase desde o seu início, uma parceria luso-africana (e, depois, euro-africana). Um horrível negócio que resultou do entrecruzar dos interesses dos comerciantes e povoadores portugueses (e, depois, ingleses, holandeses, brasileiros, etc.) com os interesses das chefias africanas.

Foi já há mais de 30 anos que John Thornton mostrou, num livro justamente célebre (Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680), que mesmo que o quisessem, os portugueses e outros europeus não dispunham geralmente de meios para forçar os africanos a participar num comércio à revelia dos seus interesses. Mostrou, ainda, que os líderes negros não eram irracionais nem comparsas menores num negócio dirigido pela Europa, e que a sua participação no tráfico foi consciente e voluntária. Até porque aquilo que os portugueses ofereciam — e os africanos adquiriam — eram, acima de tudo, bens de prestígio e não produtos essenciais. Tudo o que foi feito, foi-o com o aval e a colaboração de muitos africanos que lucravam — já veremos como — com o negócio.

Isto significa que para acabar com o tráfico, no século XIX, foi necessário agir não só contra os traficantes ocidentais, mas também contra os negreiros africanos e os potentados negros que não queriam terminar aquele negócio. E foi necessário agir, por vezes, com dureza e recurso às armas. Lagos, por exemplo, foi bombardeada, em 1851, e o rei local, Kosoko, que queria prosseguir o tráfico transatlântico, foi deposto e substituído por alguém que aceitava a política abolicionista britânica e concordava em segui-la. Os portugueses ocuparam o Ambriz, em 1855, para estancar o comércio negreiro que os reis locais aí faziam (ou permitiam que se fizesse). A foz do Zaire, por onde fluíam muitos navios negreiros, foi bloqueada. E há muitos outros exemplos análogos de pressão sobre os africanos para que parassem o tráfico negreiro na fonte. Ainda assim, havia reis africanos que tudo faziam para prosseguir o negócio e que conseguiam escapar pelos buracos da rede. O rei do rio Sherbro, na actual Serra Leoa, por exemplo, conseguiu mesmo enviar um navio com negros para vender em Cuba, onde se pagava bem pela gente escravizada.

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Por que razão os reis e chefes africanos — que os woke gostam de imaginar que teriam sido ludibriados pelos europeus — se agarravam tão tenazmente àquele negócio? Porque ele não era o que geralmente se imagina e porque tinha para esses africanos vantagens que os woke ignoram porque querem ignorá-las. Em finais de Abril, a jornalista brasileira Giuliana Miranda, com quem tive o prazer de debater na SIC Notícias, dizia que os africanos só tinham ganho “uns espelhinhos” com o tráfico negreiro. Muita gente pensa como ela, mas está enganada. Era comum os manifestos de carga dos navios negreiros registarem dezenas ou até mais de uma centena de artigos, alguns deles de luxo e elevado estatuto, como candelabros ou vinhos finos. Esses artigos não tinham valor monetário para os africanos, mas tinham enorme valor estratégico naquelas regiões.

Por isso, aquilo que os europeus ofereciam em troca de escravos era demasiado aliciante em termos das economias políticas africanas para poder ser liminarmente recusado. Para um rei africano, os produtos europeus (panos, bebidas alcoólicas, etc.) eram mais acessíveis e mais adequados do que os seus equivalentes africanos para utilizar como presentes aos chefes de aldeia, que retribuiriam com esposas, escravos, provisões e, sobretudo, obediência. Para além disso, os bens europeus podiam chegar a crédito e à margem da rede de complicadas interrelações sociais e de clientelismo africanas, o que significava que a sua aquisição não implicava obrigações reconhecidas entre o comprador e o vendedor. Assim, e na medida em que o poder político e o prestígio social dependiam do número de parentes e de dependentes que cada um tinha ao seu dispor, não admira que as sociedades africanas tenham acabado por aderir à venda de pessoas a troco de bens que lhes permitiam adquirir ou dominar ainda mais pessoas, pois esse era o meio de pagamento em muitas das suas transacções internas. Como Joseph C. Miller mostrou em Way of Death, o seu estudo magistral a respeito do tráfico angolano, o que sucedia é que, de um ponto de vista de economia política, os africanos tinham várias e boas razões para vender aqueles que os ocidentais queriam comprar e faziam-no muitas vezes por motivos semelhantes às estratégias desenvolvimentistas do empresário moderno.

Alegam os woke, quando não podem escapar a esta evidência, que os ocidentais ganharam mais do que os africanos, mas a conta é impossível de fazer porque obrigaria a pensar simultaneamente duas economias políticas de características incompatíveis para tentar encontrar, na conversão de uma para a outra, o balanço de perdas e ganhos. O que importa não perder de vista é que os lucros dos potentados e negociantes africanos eram a tal ponto grandes que muitos deles não queriam abrir mão do negócio e tiveram de ser forçados a fazê-lo.

Mas admitamos que os ocidentais ganharam mais. Nada disso é motivo de espanto. Nas parcerias é comum um dos membros ganhar mais do que os outros que, por vezes podem, até, vir a perder. E refiro-me a todo o tipo de parcerias. Toda a gente sabe que a Geringonça foi uma parceria político-parlamentar entre PS, BE e PCP, e toda a gente sabe que o PS ganhou eleitoralmente com o acordo, ao passo que os outros perderam. Mas nem por isso deixou de ser uma parceria voluntária, e esse é o ponto essencial a não esquecer aqui: o tráfico transatlântico foi, no geral, uma parceria voluntária.

Em desespero de causa, muitos wokes argumentam que mesmo que nessa altura os reis e chefes africanos tivessem lucrado, viriam a perder mais adiante, quando foram trucidados pelo colonialismo. Bem, isto não é bem um argumento, mas sim uma descida ao ponto zero do raciocínio. É o mesmo que alegar que não terá valido de nada aos romanos terem explorado as riquezas do mundo antigo, terem lucrado e beneficiado com elas, porque acabaram por ser vencidos e conquistados pelos visigodos e outros bárbaros germânicos. Chama-se a isto terraplanar a história ao ponto da indigência mental. Os acontecimentos de um determinado período não devem ser historicamente avaliados e explicados à luz do que viria a acontecer 200 ou 300 anos depois. Os historiadores esforçam-se por avaliar as coisas por aquilo que elas eram, em cada época, e não por aquilo em que se tornaram ou a que terão dado azo séculos depois. Em 1685 nem os negros nem os brancos envolvidos no comércio negreiro sabiam ou poderiam saber que 200 anos depois haveria a Conferência de Berlim, que o racismo se tornaria uma ideologia dominante, que a medicina ocidental começava a perceber e a controlar as febres tropicais, e que se estavam a inventar armas de repetição que iriam permitir penetrar em África e conquistá-la. Não se avalia nem se explica a Alemanha de Hitler por aquilo que ela agora é, nos tempos de Scholz.

É por tudo isto que aqui fica dito que é moral e intelectualmente escabroso, para não lhe chamar coisas piores, querer atirar a responsabilidade do horrível tráfico transatlântico de escravos apenas para as costas dos portugueses e de outros europeus ou americanos. Foi uma responsabilidade histórica mútua afro-ocidental e não o perceber — ou recusá-lo — é coisa de fanáticos/as cegos/as e estanques ao conhecimento histórico.