Tem corrido muita tinta sobre residentes não-habituais e nómadas digitais. A partir de determinado momento, é o equivalente jornalístico de um filme que começa a meio. É fácil perceber que há quem esteja a favor e quem esteja contra. Mas o que significa cada um destes conceitos? Ora, neste texto vamos ver:

  • Nos Pontos 1 e 2, o que é um residente não-habitual
  • No Ponto 3, o que é um nómada digital
  • No Ponto 4, o que acontece quando cruzamos os conceitos
  • No Ponto 5, as consequências
  • No Ponto 6, a conclusão

1 O regime dos residentes não-habituais surge a propósito do IRS. Para entender o que é o regime, o principal é entender o que é um residente não-habitual. Para o ser, é preciso:

  • Passar a ter residência fiscal em território português;
  • não ter sido residente em território português nos 5 anos anteriores; e
  • requerer o estatuto.

O regime fiscal é complexo de explicar, porque abrange muitas situações diferentes, com muitas vírgulas e pontos-e-vírgulas. Diverge, mais ou menos, consoante a proveniência (nacional ou estrangeira) dos rendimentos e consoante o tipo de rendimentos (de trabalho, de pensões, etc.).

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Ponha-se a lupa nos rendimentos de trabalho dependente (isto é, em termos simples, com entidade patronal) e independente (isto é, em termos simples, sem entidade patronal), de fonte portuguesa, por exemplo: estão sujeitos a uma taxa de 20%. Quais as vantagens?

Nota: neste caso, é preciso que estejamos perante “actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico”: ver Ponto 2, em baixo.

Um exemplo ilustrativo: se um português, residente e sob os termos gerais, ganhar 1.300€ brutos por mês, já está a pagar uma taxa de imposto mais onerosa do que a de um residente não-habitual, segundo os escalões gerais e actualizados de IRS previstos no Orçamento de Estado de 2023.

Outro exemplo: pensões obtidas no estrangeiro. A partir de 2020, a taxa passou a ser de 10% (após pressão: o regime anterior, por motivos técnicos associados a convenções internacionais, desembocava na não tributação – o que já foi ultrapassado, mas apenas em 2020).

O regime tem a duração de 10 anos.

2 Em cima falou-se de “actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico” – e este é o bull’s-eye da lógica do regime. É um conceito definido numa portaria do Governo, actualizada em 2019, que abrange:

  • “Director-geral e gestor executivo, de empresas”, “directores de serviços administrativos e comerciais” (e mais outros directores);
  • “Especialistas das ciências físicas, matemáticas, egenharias e técnicas afins”;
  • “Médicos”, dentistas e “estomatologistas”
  • Professores do ensino superior;
  • “Trabalhadores qualificados” de vários sectores como “floresta, pesca e caça, orientados para o mercado”, “indústria, construção e artífices”;
  • Etc.

O objectivo do regime é obviamente, nesta secção, o de atrair trabalhadores qualificados para Portugal, pela mão de leis fiscais comparativamente benévolas. Não deixa de ser interessante a nota da jornalista Elisabete Miranda, do Expresso, que explica esta principal lógica do regime e, de forma (deliberadamente) irónica, fala dos pensionistas no mesmo parágrafo.

3 Tem-se falado muito dos nómadas digitais. São trabalhadores remotos – daí digitais, porque apenas precisam de um computador ou de um tablet para trabalhar. Saltam entre países – nómadas, com estadias médias de 2 meses, segundo Gonçalo Hall, presidente da Digital Nomad Association Portugal.

A figura do “trabalhador remoto”, antes residual, teve como momento catalisador a pandemia. Temos cada vez mais trabalho exclusivamente à distância; logo, temos mais potenciais nómadas digitais – e as comunidades de nómadas digitais, que são polos aglutinadores e integradores, começaram a aumentar em dimensão e quantidade.

No final de Outubro, mudou o regime da atribuição de vistos, que passou a prever a possibilidade de trabalhadores remotos passarem até um ano em Portugal, desde que aufiram, pelo menos, quatro vezes o Salário Mínimo Nacional (neste momento, 2.820,00€).

Naturalmente, os nómadas digitais podem ser residentes não-habituais.

4 Quais são as consequências de cruzarmos os dois regimes? Passamos a ter facilitada a entrada de migrantes de curta duração, que trabalham remotamente e auferem salários comparativamente elevados face à realidade portuguesa.

Ou seja: em termos comparativos, o salário médio português, antes dos impostos, anda pelos 1353,00€ mensais (dados do INE, do 3.º trimestre de 2022), com a agravante da inflação (ou seja: a mesma quantidade consegue pagar menos do que antes).

Em termos comparativos, estes trabalhadores, caso entrem na categoria de sujeitos ao regime dos residentes não-habituais, vão ganhar 2.820,00€ ou mais enquanto estão sujeitos a uma taxa de imposto muito menos onerosa do que a do português médio.

5 Até agora foram dados. Há muitas críticas a apontar. Em termos simples, apenas três notas. Como no filme do Clint Eastwood:

  • The Good: regime fiscal mais atractivo
  • The Bad: consequências que a entrada de migrantes tem no mercado, nomeadamente imobiliário
  • The Ugly: como é ser um jovem, na casa dos 20 ou dos 30, nascido em Portugal

The Good. Não corresponde à verdade dizer que não há uma contrapartida para um regime destes (mas é comum ouvir-se o contrário: na coisa pública, a maioria argumenta como se estivesse a tentar vender um carro).

Não é difícil imaginar que este cruzamento é uma “tempestade perfeita”: os trabalhadores remotos e os vistos, o regime fiscal competitivo, os anúncios na Web Summit, um país bonito e na moda, et cetera. O resultado lógico é a entrada de migrantes endinheirados, para consumir e investir em Portugal.

A partir daqui, é uma questão de perspectiva. Alguns falam no aumento acentuado da despesa fiscal, que se deve essencialmente ao regime dos residentes não habituais – isto é, a receita que o Estado opta por não cobrar, por exemplo com benefícios fiscais.

Outros desmentem: seria “falacioso” apontar isto como uma despesa, quando, na realidade, muitos dos que caem sob a alçada deste regime não assentariam em Portugal. No fim de contas, temos mais receitas fiscais, porque há mais rendimento a ser tributado (ainda que a uma taxa de 20%) – e esta é uma lógica difícil de contrariar.

O problema é o que vem a seguir: se estamos confortáveis em indexar os prejuízos, nomeadamente sociais, ao valor do euro (e àquilo que o euro nos pode comprar).

A Secretária de Estado do Turismo, Comércio e Serviços etiquetou Portugal como “um país sexy e apetitoso”: uma forma interessante de mostrar conforto com este regime. Acrescenta que não vê aqui desigualdade fiscal entre quem trabalha em Portugal e quem vem de fora: “quem ganha são os portugueses”.

Com um silêncio expressivo – uma resposta entre as linhas, inteligente, como natural da figura –, o Ministro das Finanças, após ser interpelado relativamente à justeza do regime, respondeu: “precisamos de ter um regime competitivo”; e que o equilíbrio não é fácil. É verdade: apesar de não corresponder precisamente à pergunta, ilustra a filigrana da questão.

Mas a balança tem dois pratos:

The Bad. “Podemos ter um problema, porque as pessoas vêm para Porto e Lisboa e os preços sobem”, diz a Secretária de Estado do Turismo. Ou seja, a parte má de ter migrantes com salários comparativamente elevados é que eles fazem precisamente o esperado: pelo positivo, gastam; pelo negativo, gastam – o que não abona a favor do problema que o país tem no sector imobiliário.

Podíamos falar de outros pontos – mais ou menos claros –, mas este é puramente objectivo, e fácil de compreender: é difícil ter casa. Não falamos de viver no interior: um problema diferente, que não domino tanto (vivo no Porto), nem vem a jusante do tema dos residentes não-habituais.

É difícil arrendar: desde 2017, as rendas subiram 42% em Portugal, 49% no Porto e 53% em Lisboa (segundo estatísticas do INE).

Também é difícil comprar casa, nomeadamente para um jovem: quantos jovens têm casa própria? Em 2017, só 24% dos jovens abaixo dos 30 tinha casa própria; em 2011, 45%; em 2001, 64%; em 1991, 50%; em 1981, 41% (Fundação Calouste Gulbenkian). Já para não dizer que, de 1990 para 2016, a despesa anual média das famílias com a habitação passou de 12% a 32%, segundo o Diário de Notícias.

Os 24% são uma estatística interessante: recentemente, num artigo para o Expresso, o Daniel Oliveira citou uma notícia britânica que dizia que, em 1997, mais de 60% dos britânicos de classe média, entre os 25 e os 35 anos, tinham casa própria; vinte anos depois, desce para 35%. Ou seja: não acontece só cá.

Seja como for, somos o país da União Europeia onde se sai mais tarde de casa: 33, 6 anos. Não parece que seja exclusivamente por razões culturais.

O fácil acesso ao crédito, com as antigas taxas de juro benévolas, era uma espécie de dique que sustentava um problema ainda maior nesta frente. Os salários eram baixos, mas os portugueses pediam dinheiro emprestado com juros baixos para comprar casa própria – o que, por si, podia controlar (quanto possível) os preços no mercado de arrendamento. Sucede que o dique desabou – e os portugueses, com maus salários e com este mercado imobiliário (para compra ou arrendamento), em particular os jovens, têm de emigrar, ou arranjar maneira de “aprender a nadar”.

Isto não se resume em meia dúzia de parágrafos, e num simples problema de oferta e procura (que também é). Por exemplo, em Lisboa, parece que há 48 mil casas vazias, não sendo habitação nem principal, nem secundária; em muitos casos, são imóveis devolutos; e até a Câmara Municipal de Lisboa é proprietária de 2.000 destas (Diário de Notícias).

No fim, medidas para atrair residentes não-habituais e nómadas digitas, que resultam em (i) mais procura na compra de imóveis e (ii) mais alojamentos locais. Ou seja: o mercado fica mais caro. Não será uma política de vistas grossas, de curto prazo?

The Ugly. Este ponto não é propriamente técnico; mas parece que há uma espécie de fantasma a flutuar sobre todo o texto – diferente da objectividade dos tópicos anteriores.

Há uma espécie de ironia quando atraímos os jovens de fora com promessas de enquadramentos fiscais generosos ao mesmo tempo que o número de emigrados portugueses equivale a 20% da população.

Uma notícia (impecavelmente elaborada) do Expresso, de 2021, indicou o perfil do jovem português (15 aos 34 anos):

  • 72% recebe menos de 950€ líquidos;
  • Cerca de metade tem um contrato instável; e
  • 30% deles quer emigrar.

Estes aspectos quase não justificam grandes referências a peças jornalísticas: é certo, sabido, público. E, precisamente por isso, é ostensivamente fácil ficar com a amarga consciência de que esta situação, em todos os seus contornos, não é justa. Como se quiséssemos saber dos (i)migrantes qualificados, mas não dos nossos (e)migrantes.

Ou, pelo menos, não queremos saber o suficiente do português para o tratar fiscalmente como tratamos um sueco digital e endinheirado.

6 Em suma, há algo que não está bem, e que não se está a resolver. No que toca ao regime dos residentes não-habituais, como existe, ele não é mau de per si: tem um objectivo legítimo, mas é manchado pelo contexto em que o português está a viver. Podia mudar um pouco, mas “um pouco” não se costuma ouvir: é sempre “acabar” ou manter como está. Não há outra opção?

Ficamos com medidas conjunturais e, entretanto, a água continua a correr, como se não tivesse alternativa. Quem o encarna bem foi um certo Ricardo Robles, que disse, em entrevista, que Lisboa era “uma cidade cada vez mais para ricos”, e procedeu a vender um prédio em Alfama por 5,7 milhões de euros, no mesmo ano.