Conhecem “Uma canção desnaturada” que Chico Buarque compôs e incluiu na sua Ópera do Malandro (1978)? A letra dessa canção fala de uma mãe raivosa, frustrada, que amaldiçoa uma filha já adulta e autónoma por ter decidido seguir um rumo que ela detesta e condena. Essa mãe gostaria de voltar atrás para poder torturar a filha, nos seus tempos de criança ou de menina ainda dependente, para poder aviltá-la e poder negá-la a ponto de a impedir de nascer. Como essa mãe diz, “se fosse permitido, eu revertia o tempo, para poder reviver a tempo de poder-te ver (…) batendo com a moleira, te emporcalhando inteira e eu te negar meu colo (…) te recolher para sempre à escuridão do ventre (…) de onde não deverias nunca ter saído”. A letra completa pode ser lida aqui.
Esta canção vem-me à cabeça sempre que leio textos de (ou notícias sobre) gente woke porque reverter o tempo é, no fundo, o mais acalentado sonho do wokismo. Reverter o tempo para poder corrigir, à luz das perspectivas do presente, várias injustiças e entorses que esse tempo permitiu e albergou. Na base desse sonho — ou será, antes, pesadelo? — está, como na canção de Chico Buarque, a raiva e a impotência perante aquilo que já não se pode controlar e que seguiu um rumo que se detesta e reprova. Está, também, uma recusa de aceitação da história, do mundo e das pessoas tal como elas são. Mas para além de corrigir os woke querem também punir. Uma vez que já não podem castigar aqueles que, em sua opinião, foram culpados de vários malefícios, querem castigar os seus descendentes. Por isso, desejam saber quem possuía escravos ou fazia o seu tráfico, não por interesse histórico, mas para pedir contas aos seus trinetos ou tetranetos, para exercer pressão sobre eles numa lógica de “se não foste tu, foi o teu pai”.
Sim, os activistas woke são o lobo dessa fábula. Não estão cheios de amor, de compreensão e de desejo de bem fazer, estão, isso sim, cheios de ódio e de vontade punitiva e revanchista — e são, nas ideias que espalham e no estrago que fazem, comparáveis aos milenaristas medievais. Por isso, para além de actuarem sobre a representação, os vestígios, os símbolos e as narrativas de tempos passados — e daí a fúria correctora que incide sobre estátuas, pensamentos, palavras ou, até, livros —, praticam, também, medidas de segregação que invertem o segregacionismo racista. Há tempos levou-se à cena em Londres uma peça teatral criada especificamente para negros. Ainda que os seus promotores afirmassem que ninguém estava impedido de assistir a ela, lembravam que a performance fora pensada para ser exibida a gente negra, ou que como tal se identifica, e longe do olhar dos brancos. Uma das pessoas chamadas a comentar isto na televisão foi Imarn Ayton, uma jovem actriz londrina, activista e organizadora de protestos que se tornou proeminente no âmbito do movimento Black Lives Matter. Quando o entrevistador, Piers Morgan, a confrontou com a pergunta óbvia — que aconteceria se gente branca fizesse uma peça exclusivamente para brancos? —, Imarn Ayton ficou agitada e palavrosa, e acabou por o insultar, chamando-lhe “racialmente preconceituoso”, isto é, racista.
Também temos activistas destes em Portugal. Do meu lugar de observador e estudioso do wokismo detecto muitas dezenas, mas haverá certamente centenas ou milhares, gente que não se refreia de insultar meio mundo, chamando-lhe racista ou pior. Essas pessoas estão entre nós, têm nomes, exprimem-se assiduamente nas redes sociais e no espaço público, mas uma coisa que chama a atenção é o seu silêncio comprometido ou indulgente perante os casos em que, aparentemente, são os brancos as vítimas de ódio racial. Como todos sabemos na madrugada do passado dia 21 de outubro, Odair Moniz, um cidadão de Cabo Verde imigrado em Portugal, foi mortalmente baleado por um agente da PSP. As circunstâncias exactas em que essa trágica morte ocorreu ainda estão sob investigação, mas logo se levantou um clamor de muita gente chocada com uma morte aparentemente evitável. Parte dessa gente começou a sugerir que teria havido motivações racistas no trágico acontecimento e a organização SOS Racismo, por exemplo, tornou público um comunicado no qual considerou que a PSP está “inegavelmente infiltrada pela extrema-direita racista”, pelo que “as mortes de pessoas negras às mãos de agentes policiais levantam as maiores dúvidas e preocupações sobre as reais motivações das intervenções.”
Lamentavelmente houve quem fosse além desse clamor e dessas suspeições e passou-se para uma série de tumultos que assolaram as periferias de Lisboa, com incêndios de automóveis, autocarros, danificação de bens públicos e, infelizmente, às primeiras horas do dia 24 de outubro, o ataque a um outro autocarro a que os atacantes largaram fogo com o motorista, Tiago Cacais, dentro do veículo, só tendo conseguido abandoná-lo após sofrer graves queimaduras. Esse motorista foi entrevistado mais de um mês depois, no dia 27 de novembro, pela jornalista Sandra Felgueiras, na TVI, e descreveu minuciosamente o horror por que passou e a sua perplexidade por terem tentado matá-lo: “Mas porquê eu? Porquê a mim? Porque é que não me deixaram sair do autocarro?”, interrogou-se. “E qual é a resposta que dá a si próprio?”, perguntou-lhe a jornalista. “Não tenho resposta. Ou é por ser branco, porque os meus colegas no Bairro do Zambujal foram convidados a sair do autocarro, e eles eram de cor, e eu era branco”, alvitrou ele.
Há aqui fortes indícios de um crime aparentemente motivado pela cor da pele, mas eu não vejo os que vieram para a praça pública lamentar a morte de Odair Moniz, o que é humano e compreensível, e condenar a acção da PSP, insinuando, de forma abusiva, que se teria tratado de uma acção racista, pronunciarem-se agora, e muito menos indignarem-se publicamente, com o que sucedeu ao motorista Tiago Cacais. De facto, onde está o repúdio do SOS Racismo perante esses factos? Não promete o SOS Racismo, segundo as suas próprias palavras, que tomará “posições públicas contra todos (sic) os actos racistas, ou que promovam o racismo”? Se assim é, porque ficou em silêncio desta e de outras vezes em que as vítimas têm pele branca? Julgará o SOS Racismo que não há racismo contra brancos? Ignorará que milhões de judeus, de pele branca, foram perseguidos e mortos por motivos racistas? E onde estão as centenas de wokes que têm enchido, anos a fio, as redes sociais com o suposto racismo estrutural dos portugueses? Como entender o seu silêncio? É sempre difícil interpretar o mutismo, mas impressiona que naquele sector de opinião ele seja tão unânime e que não se tenha feito ouvir uma única voz a condenar a barbaridade que fizeram a Tiago Cacais. Parece haver aqui um duplo critério, consoante se é branco ou negro, duplo critério que, sendo em si mesmo chocante, é muito eloquente sobre o espesso tapete de rancor e parcialidade em que o wokismo caminha. Não tenhamos dúvidas: se fosse dado às pessoas woke, que gostam de se auto-proclamar anti-racistas e que constantemente nos exigem reparações e punições por condutas dos nossos antepassados, o poder de reverter o tempo e de agir sobre os acontecimentos históricos e sobre as forças que os fizeram rolar em determinados sentidos, é muito improvável que nos dessem um mundo equilibrado e justo. Estou até convencido de que nos dariam uma realidade tão má ou pior, ainda que com posições sociais e políticas invertidas ou diferentes, do que a história, no seu decurso, espontaneamente nos deu.