A semana passada, o Supremo Tribunal Americano tomou a decisão de revogar Roe v. Wade, o precedente de 1973 que impedia os estados americanos de proibirem o aborto até ao momento da viabilidade do feto. A decisão é, do ponto de vista processual, completamente legítima. No entanto mostra, claramente, que a democracia americana está a viver o seu momento mais perigoso desde a Guerra Civil. Para tentar compreender a delicadeza de tudo isto, deixo algumas notas.

1 Esta decisão foi uma enorme vitória do movimento conservador e do Partido Republicano. Donald Trump havia prometido que, caso fosse eleito, nomearia juízes para o Supremo Tribunal com o objectivo de revogar o Roe v. Wade. Curiosamente, até à data em que escrevo, Trump tem estado em silêncio absoluto. Não se pronunciou sobre esta decisão, como já não o havia feito no momento da fuga de informação em Maio, o que pode significar que antevê as suas potenciais consequências negativas nos subúrbios e exúrbios brancos. Numa potencial recandidatura presidencial, Trump poderá estar a prever potenciais danos para os Republicanos. Sendo pública a minha abjecção por Trump, o seu instinto político para perceber as mudanças tectónicas que estavam a acontecer no país e às quais Hillary Clinton não deu a devida atenção permanece intacto.

2 A polarização está a tornar a sociedade americana ingovernável. Ambos os partidos transformaram a política numa luta do bem contra o mal, em que cada lado se vê como moralmente superior e possibilidade de cooperação interpartidária, indispensável no sistema político americano, está posta de lado. Os Republicanos tornaram-se, na prática, um partido de nicho, com uma coligação social e política relativamente homogénea, juntando gente dos mundos de negócios com evangélicos brancos. Beneficiam ainda da geografia eleitoral e da concentração estratégica do seu eleitorado num conjunto de estados que, devidamente mobilizados, garantem vitórias eleitorais. Pelo contrário, os Democratas são cada vez uma coligação heterogénea que, apesar de numericamente maioritária na população, tem dificuldades em elencar as políticas que os unem. O sistema político americano está desenhado para os partidos funcionarem como grandes aglutinadores de facções organizadas para fomentar coligações intra e interpartidárias. À medida que os Republicanos se tornam um partido mais homogéneo, e com menos incentivos para as coligações interpartidárias, a continuação das coligações intrapartidárias no partido Democrata torna-os menos eficazes no jogo político.

3 Na prática, os Estados Unidos estão a tornar-se um país com dois sistemas, no qual a população está dividida pelas suas identidades políticas. Veja-se, por exemplo, a clássica pergunta da Gallup que, desde os anos 60, vem perguntando aos americanos o quão confortáveis estariam se um filho seu casasse com alguém do outro partido. Nos anos 60, a esmagadora maioria mostrava estar perfeitamente à vontade com a ideia de um filho democrata casar com uma republicana, e vice-versa. Actualmente, a maioria das pessoas demonstra um total desejo de homofilia, expressando um profundo desagrado por casamentos fora do “partido”.

4 A decisão do Supremo Tribunal abre caminho a uma série de medidas que são, verdadeiramente, medievais. Finda a protecção federal ao direito ao aborto, os estados ficam encarregados de legislar sobre a matéria. O que se avizinha é terrível. Estados como Arkansas, o Louisiana ou o Missouri tem já legislação que proíbe o aborto em casos de violação, incesto ou perigo de vida para mulher. Para além disso, pretendem promover a delação sobre a vida das mulheres, assim como utilizar a pegada electrónica de cada mulher para monitorizar a sua actividade sobre potenciais viagens inter-estaduais para realizar um aborto. Os Taliban não fariam melhor, assim tivessem os recursos financeiros e tecnológicos.

5 A pergunta óbvia é: por que nos deve interessar tudo isto? A resposta é simples: os direitos das mulheres são direitos humanos e nada do que é humano nos deve ser estranho. Para além da defesa intrínseca dos direitos humanos, existe ainda um problema instrumental para a Europa. No contexto actual, precisamos dos Estados Unidos mais do nunca. Precisamos da sua liderança internacional na mesa da diplomacia e na verdadeira guerra que está a ser travada contra as trevas de Putin. Infelizmente, Joe Biden e a elite americana estão verdadeiramente focados em salvar a democracia no seu país das forças cavernícolas que ganharam terreno nas últimas décadas. Veja-se, de resto, a atenção mediática e política que está a ser consumida na comissão sobre os eventos de 6 de Janeiro de 2021. Estas forças sempre existiram, mas houve um tempo no qual tinham muito menos poder simbólico, mediático e político. Para além disso, Biden é um presidente cansado. Apesar de não ter cumprido sequer dois anos de mandato, e ter, de resto, uma maioria no Congresso, não parece ter força anímica e política para resolver a imensidão de problemas que tem pela frente. Temo o que nos espera em Novembro e em 2024.

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