Em 1982, estreou um filme magnífico, que alcançou enorme sucesso: “Oficial e Cavalheiro”, com Richard Gere no papel principal. No original, “An Officer and a Gentleman”. Para assinalar os 40 anos deste êxito, os produtores resolveram criar uma sequência original: não uma continuação, não um “remake” actualizado, mas uma história de contraste, uma espécie de negativo. Os produtores justificaram a ideia com o propósito de “traduzir as diferenças culturais entre o espaço público nos anos ‘80 do século XX com o dos anos ‘20 do século XXI”. Sem dúvida, interessante. A nova fita estreou ontem e deu na televisão. No original, “A Ruffian and a Scumbag”; nas salas portuguesas “Rufia e Javardo”. Andrew Venture no principal papel.
Vi, desde 1975, todos os debates televisivos em que esteve um líder do CDS. Nunca houve um debate como este. Há sempre uma primeira vez. Ontem, Francisco Rodrigues dos Santos enfrentou o primeiro combate de boxe em televisão. Ganhou-o claramente.
O debate em si era melhor que não tivesse acontecido. Mas, estando no caminho, era necessário que acontecesse. O debate foi várias vezes feio de se ver. Mas era preciso que o víssemos. Não precisávamos daquilo para nada. Mas era imperioso vermos que aquilo existe e que é mesmo assim.
Por acaso, eu tinha estado duas horas antes com o líder do Chega, entre outros partidos parlamentares, num outro debate sobre Regionalização, promovido pelos DN/JN/TSF. Ele falou com a sua conhecida oratória, é certo. Sempre carregada. Mas noutro registo, próprio de uma sala. Ali, na CNN Portugal, ao fim da tarde, vestiu o modo arruaceiro, o pugilista que, aqui e ali, saca da naifa de ponta e mola.
Esta variação, que é acentuada e frequente em Ventura, causa perplexidade e dúvida. Afinal, quem é ele? E o que é ele? Será mesmo assim? Ou será apenas uma representação? Terá um pensamento? Ou representa uma aparência de pensamento? Será uma “persona” que construiu e a que vai acrescentando arestas? E, sendo apenas uma “persona”, terá já a “persona” tomado conta de si?
Fazem-me confusão as notícias que dão conta de o Presidente do Chega ter sido um aluno de Direito com muito altas classificações. Terá havido engano? Esse estatuto não quadra, por exemplo, com ideias de devolver as punições físicas ao nosso Direito Penal. E também não se ajusta ao estilo trauliteiro que gosta de exibir. Ontem, esmerou-se.
Apareceu no debate com fato completo: zaragateiro, grosso, sem filtros, sem respeito, provocador, desonesto, mentiroso, manipulador, malcriado. Em vez de argumentos, pedradas. Em vez de ideias, insultos. Em vez de raciocínio, tiroteio. Apresentou-se decidido, predeterminado, a fazer do debate pancadaria, do primeiro ao último minuto. Assim fez. Se estivesse lá o Mangas da Porcalhota, teria sido igual. O Mangas não sabe outra coisa, Ventura escolheu ser assim.
Rodrigues dos Santos não podia ter feito diferente. A luta era de rua; tinha de lutar na rua. Travar o combate e ganhar. Se tivesse 60 ou 70 anos, podia talvez tentar outro caminho, reagir com desdém e altivez, ser sobranceiro, ensaiar o paternalismo. No tempo e no lugar que é o seu, só podia ter feito como fez.
Respondeu ao desafio. Foi bravo. Respondeu. Contra-atacou. Nunca quebrou. Meteu boas bolas. Conseguiu marcar alguns pontos no meio do ruído. Mostrou ter punhos, como era preciso – e que não são de renda. Usou os punhos, quanto baste. Graficamente, deu a resposta mais óbvia ao insulto garoto da “direita mariquinhas” contra que defendeu o CDS, com quase 50 anos de história ao serviço de Portugal.
Não houve KO. Não os há nestes debates. Mas Francisco ganhou claramente aos pontos. Deixou Ventura brilhar na javardice e na desconversa. Desferiu-lhe algumas respostas certeiras e lançou ataques a que Ventura não soube responder. Encostou-o várias vezes às cordas, levou-o ao tapete aqui e ali. O rosto do Chega ficou diferente: jorrando sempre o guião de insultos e provocações, vimo-lo aturdido, embaraçado, amolgado. Não saiu a rir. Não saiu por cima.
Como debate político, foi uma vergonha. André Ventura fez a escolha. E levou-se a si mesmo como metralhadora. Francisco Rodrigues dos Santos não podia evitá-lo, senão indo-se embora. Não podia fugir. Não fugiu. E venceu. Não é uma grande vitória. Mas foi a vitória que aconteceu, no debate canalha que deve de enfrentar. E, bem vistas as coisas, era a vitória necessária.
Tendo acontecido, deixou lições e esclarecimentos. Mostrou por que é impossível e indesejável uma conversa com o Chega. As dúvidas, se as havia, desapareceram. Ventura mostrou não só o lixo, mas a sarjeta. Ele não tem nada a ver com a direita. Ele dá mau nome à direita. Sempre que Ventura usar o nome de “direita” e algum crédito lhe for dado, o nome da direita fica emporcalhado. E faz-nos perder.
“A Ruffian and a Scumbag” nunca será um êxito como o grande original “Oficial e Cavalheiro”. Mas deu para um fim de tarde diferente. Visto, primeiro, com espanto; depois, como curiosidade de comédia. O “Rufia e Javardo” levou para contar.