Os nossos governantes gostam de números. Não há político que não adore citá-los. Dá um ar de competência, de saber, de segurança. Quanto mais bicudo for o número, melhor, mais competência terá quem o cita. Empregar termos “estatísticos” então faz subir o valor do discurso à estratosfera. Diariamente, a imprensa reproduz esse e outros números e os chavões que os acompanham. Mas não se interrogam. Foi agora libertada (mais uma) ideia para “resolver” o problema da falta de habitação. A “ideia” é poder construir em “solos rústicos”. Importa começar por explicar que até ao último delírio legislativo, do governo PS, estavam definidas três classificações para os solos:, rústicos (os que ou não tinham capacidade edificativa por estarem em zona de reserva ecológica, como por serem necessários à produção agrícola ou similar), urbanos (onde havia regras e por norma já haviam sedimentado gentes e negócios) e solos urbanizáveis (os expectantes, que seriam ou não introduzidos no mercado se este o pedisse, mas já com pré-regras definidas). O conceito de solo urbanizável expirou (literal e metaforicamente) em 31 de Dezembro de 2022. Num acesso de “modernização” e de “planificação” reduziram-se as áreas onde, a prazo, sempre que o mercado assim o pedisse, fosse possível construir. Eram reservas que quer os seus proprietários, se tivessem capacidade e vontade, podiam urbanizar, ou empresários que em parceria com os primeiros, ou adquirindo o fariam, sempre e só se o mercado, do lado da procura o justificasse. Ou seja, a redução, em contra-ciclo da oferta de solo para edificar saiu da cabeça do governo anterior. Importa que isto fique claro, porque parece-me que se andam a esquecer deste pequeno pormenor.
O que se tem de fazer agora, semântica aparte, é voltar ao que existia, isto é, recuperar o conceito de solo urbanizável, impondo às autarquias um prazo (curto) para reverem os planos de urbanização tendo em conta as necessidades de curto, médio e longo prazo. Eu sei que tem de haver regras, em tempo os PDM somados previam uma população dupla ou tripla da que temos. Mas com tanta “digitalização, informatização e plataformização” deve ser fácil criar uma plataforma onde em vez da oferta das mediadoras quem precisa de casa se possa inscrever para que quer o Estado e autarquias saiba os números exactos, quer “a oferta”
Desde que o Homem se sedentarizou que se construiu em “solo rústico”. Com o passar do tempo, séculos mesmo, fomos organizando o território, concentrando a população, criando urbes. Parece-me uma regressão de séculos, falar-se em “construir em solo rústico” em vez de promover planos de ordenamento simplificados que façam cidade e não arrabaldes. Que garantam que as infra-estruturas lá chegam mesmo, ou em particular as de transportes públicos. É expectável que as câmaras (os seus técnicos) tenham ao longo dos anos feito várias simulações para crescimentos diferentes e diferenciados, pelo que fazendo uso desses estudos e sensibilidades creio que é possível num prazo razoável (um ano?) definir as zonas de crescimento futuro.
Mas voltando aos números, o “legislador” pretende que no “terreno rústico” sejam alocados, 70% para habitação a custos controlados (termo para o investimento público) ou a custos moderados (para o investimento privado). Os restantes 30% serão para equipamento e para habitação a “custo livre”.
Comecemos pelos 70%: a construção promovida pelo Estado ou autarquias terá o custo de produção que for possível, se o Estado estiver disponível para perder dinheiro e vender abaixo do preço de custo, no fundo fazer dumping. Se tal acontecer parece-me óbvio que não haverá um único “privado” que esteja disponível para competir neste mercado viciado.
Também importava saber, desde já, quais os montantes que o Estado está disposto a despender, por região e concelho para este programa para haver algum realismo.
Os valores limite são, dizem os jornais, a mediana dos valores de venda. Traduzindo em números – 1.661€/m2 – para o país em geral e 225% como tecto máximo para as “cidades mais caras”.
O valor do mercado de onde é retirada a “mediana” incorpora casas novas e velhas, boas e más, que pode incluir (muito) mais velhas (e usadas) que novas. Ou seja, o valor das casas “velhas” são naturalmente vendidas abaixo do preço de custo de qualquer casa “nova” de hoje.
Se o terreno, não é do Estado, alguém terá de o comprar. A esse custo há que somar o custo de infra-estruturar o terreno (digamos 50€ por m2 de habitação, já que partimos de solos sem nada e 200€ para a compra). Há que executar projectos (numa versão barata custa 3% do valor da construção, qualquer coisa como 45€/m2), há que financiar o processo, que a correr bem demorará 3 a 4 anos. Dificilmente alguém se consegue financiar abaixo dos 8% (120 a 150€/m2 ano). Os custos da construção, por mais básica, que seja, nunca andará abaixo dos 1500€/m2. Bastará o ministério ir procurar os valores a que hoje mesmo está a pagar pelas suas obras. Para que alguém se abalance a uma aventura destas vai querer um retorno, digamos 15% (a margem para a venda de roupa interior é bem maior, creio), digamos 225€/m2
Resumindo os custos: terreno + projecto loteamento + infraestruturas + projecto edifícios + construção + financiamento + margem (lucro) qualquer coisa como 2250€ na versão mais básica. Lembro, estamos a falar de custos, apenas.
Ou seja, privados nos 70% não vão acontecer, perderiam 600€ por cada m2 construído. Como rezam todas as crónicas da economia não planificada, sempre que se tabelam preços a oferta desaparece. E o Estado também não tem capacidade para dar resposta. Assim, esperam o quê? Que em 10% da área se desenvolva habitação a preço livre e que entre no mercado? Estou a considerar que 20% será para “equipamentos”, daqueles que ajudam a ganhar eleições, como polidesportivos, baloiços ou escorregas.
Somos um país sem capital, investimentos desta natureza, hoje, só com recurso a Fundos de Investimento e esses querem um retorno mínimo de 8% se investirem no mercado de arrendamento e 30% de margem sobre a venda.
Sem construção em massa, do Estado e, em simultâneo, liberalização para os privados não haverá resposta. E como tenho escrito, sem reduzir as áreas das casas e a redução das exigências para que não temos dinheiro também não haverá solução.
Se querem mais oferta sobretudo para arrendar, liberalizem, e sobretudo deem garantias aos senhorios que quem não cumpre será despejado rapidamente, que a propriedade privada será defendida que é uma das obrigações do Estado. Crie-se um seguro para as rendas e para o vandalismo.