Segundo Fernando Araújo, director-executivo do SNS, amanhã entramos no pior mês de sempre nos serviços de urgência. Em caso de emergência médica, os utentes portugueses arriscam-se a não serem atendidos num hospital. Como é óbvio, a maioria dos portugueses encarou o aviso como uma ameaça. É o histerismo do costume, sem razão de ser. O encerramento das urgências é apenas mais um passo na grande reforma estrutural que o Governo está a implementar: a substituição do Estado Social pelo Estado Sociável. O Estado Social foi uma conquista de Abril de 74; o Estado Sociável é conquista de Novembro de 23. Há quase 50 anos houve uma revolução e o país comprometeu-se a providenciar serviços aos seus cidadãos; agora há uma devolução e o país diz “tratem vocês disso, pá”.
No Estado Social, uma pessoa dirige-se ao hospital da sua área de residência, é atendido e volta para casa. Se não for uma urgência, telefona e marca consulta com o médico de família. Chegado o dia, dirige-se ao Centro de Saúde, é atendido e volta para casa. É um modelo arcaico e isolacionista. Numa altura em que há cada vez mais idosos a viverem sozinhos, um Estado Social com serviço de saúde competente, que despacha serviço, potencia a solidão. Daí o Estado Sociável apostar num SNS que funciona mal: é para fomentar o convívio. Ao dormirem à porta do Centro de Saúde para tentarem tirar a senha que talvez permita a marcação de uma consulta com um médico que pode ou não existir, os utentes são obrigados a conviver uns com os outros. Há muitos velhinhos que já só conversam com os companheiros do saco-cama ao lado. Nestes acampamentos, guarda-se o lugar quando o vizinho tem de ir à casa de banho ao café mais próximo, trocam-se dicas sobre os cantos da rua que cheiram menos a xixi de cão, comparam-se tempos passados em listas de espera, há entreajuda e solidariedade. Tudo o que falta na frieza de um atendimento eficiente que apenas trata a doença do doente e não a sua vontade de fofocar.
Outro benefício do Estado Sociável é a ênfase na sustentabilidade. Ao mesmo tempo que esperam, os utentes aproveitam restos de medicamentos uns dos outros. O antibiótico para a amigdalite que sobrou a alguém vai servir para a infecção urinária dum camarada. A ligadura que endireitou a entorse de uma velhinha, vai servir para o pulso de outra. Algálias em segunda mão também têm procura.
E reciclam-se conselhos médicos. Um obeso não consegue consulta de cardiologia? Não faz mal, há sempre um diabético que foi visto por um cardiologista em 2007 e ainda se lembra do que é que foi dito. Mais ou menos. Mas os corações continuam a funcionar da mesma maneira, não há-de haver grandes diferenças.
Os utentes não se limitam a confraternizar uns com os outros. Também se incentiva a comunhão com os próprios profissionais de saúde. Uma grávida transportada em ambulância tem agora muito mais tempo para conversar com os bombeiros, enquanto viajam pelo país em busca de um hospital com urgência de obstetrícia aberta que a possa receber. Já não é só aquela boleia impessoal a alta velocidade entre casa e maternidade mais próxima. Pelo contrário, nestas viagens, entre encostar na berma para pedir indicações, parar na bomba para atestar e verificar a pressão dos pneus, há tempo para desenvolver uma relação pessoal mais profunda do que o “aguenta mais um bocadinho que estamos mesmo a chegar!”
Não é apenas na saúde que o Estado Sociável promove a sã convivência entre compatriotas. Outro dos seus pilares é a educação, com os jovens a serem incentivados a confraternizar com os seus pares. No recreio – se faltar o professor – ou à porta da escola – se houver greve e nem sequer abrirem os portões. As crianças são assim habituadas a socializar e a contarem umas com as outras. Se chegarem a aprender a contar, claro.
Dá gosto viver num país em que vemos no concidadão um amigo, alguém com quem partilhamos experiências marcantes. Como nos transportes públicos. Quem viaja nos comboios apinhados sabe que é costume uma pessoa ficar com as costas marcadas pela fivela do cinto do passageiro contra quem está esborrachada.
Disse Fernando Araújo: “Quando começamos a fechar serviços que são indispensáveis, como a via verde coronária, por exemplo, estamos a colocar em causa a vida das pessoas. Estamos a regredir 20 anos e a colocar em causa a vida das pessoas. E isto é o que mais me preocupa, (…) é dramático”.
Está bem, Fernando. Novembro pode ser o mês mais dramático para os portugueses que não consigam ser atendidos nos hospitais e por isso faleçam. Mas e os outros? Para os restantes será um mês cheio de oportunidades. Por cada ente querido finado à porta de uma urgência fechada, vamos poder fazer amigos entre os familiares de outros defuntos à porta da mesma urgência fechada. Tema em comum já há, o resto vem naturalmente.