Não existe dignidade humana sem memória, tal como não existe consciência sem memória. Ambas sustentam a moral e, em particular, a moral social, isto é, os princípios que orientam e regulam a vida quotidiana sem os quais as sociedades não são viáveis.
Todavia, antes de tudo o resto está o pressuposto de a memória apenas ser verdadeiramente humana quando é ambivalente e complexa e, para que assim seja, as sociedades devem permitir e incentivar o alargamento dos campos de significação, o inverso do afunilamento da memória em determinados núcleos ou determinados sentidos impostos por tutelas políticas, culturais, religiosas, institucionais.
Os que protegem os indivíduos de se auto confrontarem com a complexidade e ambivalência das suas memórias individuais ou coletivas – por exemplo, impondo que se preserve apenas a dimensão negativa das memórias de um dado ciclo histórico e interditando a dimensão contrária, ou o inverso – podem propalar a sua luta no caminho da virtude, porém o que estará em causa é um caso em que o manifesto (o acidente) contraria o latente (a substância), o doublespeak magistralmente tipificado por George Orwell.
Esse doublespeak é o instrumento que impõe, pela sua natureza, formas agressivas de violência contra a dignidade mais elementar da condição humana, uma vez que fica apenas admitida meia-memória, meia-consciência, meio-ser humano. É quase só a isso que fica reduzida a condenação da existência, em Portugal, de um Museu de Salazar ou a imposição de condicionamentos apriorísticos, sempre pela esquerda, dos conteúdos de um Museu Interpretativo do Estado Novo.
Tal violência psicológica imposta por uma elite circunscrita a toda uma sociedade, ou conjunto de sociedades, fica ainda mais ostensiva num contexto em que o Parlamento Europeu, no passado dia 19 de setembro, equiparou o comunismo ao nazismo. Ainda que tal condenação chegue com décadas de atraso, ela força a que se repense o lugar histórico do Estado Novo na identidade portuguesa, ou na identidade dos povos do antigo império ultramarino.
Que se saiba, não existem suportes teóricos, conceptuais ou evidências históricas que alguma vez possam equiparar Salazar e o seu regime a Hitler e ao nazismo, ou a Estaline e ao comunismo, e foi sobretudo o comunismo o alvo da repressão política durante o salazarismo. Isso é bem mais do que um mero detalhe, trata-se de matéria substantiva.
Jamais estará em causa o branqueamento de uma indiscutível ditadura e da sua violência, a de Salazar, todavia isso é tão importante quanto a necessidade de recusar a falsificação da natureza dessa mesma ditadura, atitude que se arrasta desde 1974, assim como importa recusar a sua desinserção do contexto histórico do avanço do comunismo.
Se os resistentes comunistas foram inegáveis vítimas do regime, a situação não difere do sofrimento de milhões de indivíduos comuns que, em África e em Portugal, se viram arrastados na enxurrada de uma descolonização para a qual não foram consultados. Até agora, as mortes e as perdas irreparáveis (morais e materiais) dos últimos continuam a ser tratadas como lixo humano escondido debaixo do tapete.
Essa tipologia de relação patológica com o passado histórico prolonga no presente consequências sociais desumanas.
Veja-se como académicos, escritores, músicos, artistas, políticos, entre outros da elite de esquerda há décadas impõem ao senso comum, de forma obsessiva e por diversas vias, olhares que obliteram certas dimensões da memória social. Do alto do seu narcisismo, as mentes tutelares de esquerda determinam que aquela época histórica é boa, aquela outra é má; naquele período histórico só permitimos que se procure o negativo, mas naquele outro só admitimos a preservação da memória do que foi positivo; este ditador e a sua violência são legítimos, porém aquele ditador e a sua violência têm de ser diabolizados.
Tal gestão da memória social e, portanto, da condição humana torna impossível a racionalização dessa mesma memória social, o que impede a maturidade moral, intelectual e identitária das sociedades por elas mesmas. É o que acontece a qualquer indivíduo a quem os que o tutelam inibem ou interditam a liberdade da sua relação íntima com as suas próprias memórias. Na matéria, não existe descontinuidade entre o indivíduo e o coletivo, isto é, o caminho para o desequilíbrio mental é substantivamente o mesmo.
Salvo raríssimas exceções, sabemos que a vida vivida torna impossível dissociar o favorável do desfavorável, sendo que um e outro se explicam entre si no seu próprio contexto. Não podemos exigir o mesmo amor ao próximo como a si mesmo a um padre na sua paróquia de todos os dias e a um militar em situação de confronto armado. É por isso que truncar um dos extremos da memória coloca em causa a capacidade do sujeito (individual ou coletivo) de lidar de forma saudável com a sua própria consciência.
E não é possível continuar a tratar hoje sociedades inteiras, para mais envelhecidas, como se se tratasse de um bando infantil, irresponsável, incapaz de pensar por si mesmo.
Dada a relevância do Estado Novo (1926/1933-1974) para a identidade atual dos portugueses ou, no mesmo ciclo histórico, da colonização portuguesa para os povos africanos saídos do antigo império, truncar o lado positivo desse legado histórico para impor no presente a fixação do olhar no lado negativo constitui não apenas a imposição do desvio funcional depressivo da memória, como ainda um atropelo grosseiro à mais elementar dignidade humana.
A propósito, Carlos Amaral Dias, psicanalista português, escreveu: «[Wilfred] Bion [psicanalista britânico] diz que um paciente chega a análise com seis factos [problemas], cada um com uma versão, e está verdadeiramente em análise no momento em que passa a ter seis versões para cada facto – expandiu o campo da significação» (Freud para além de Freud, 2000, p.147). Ou seja, a sanidade mental da espécie é tanto mais reforçada quanto mais as sociedades expandem os campos de significação que atribuem ao seu passado, o que no exemplo aqui equacionado remete para o Estado Novo incluindo a colonização portuguesa em África.
Assim sendo, por que carga d’água um eventual Museu de Salazar tem de estar centrado em aspetos negativos da sua época, inegáveis, mas que, como qualquer época, nunca se resumiu a tal dimensão. É fácil antecipar que os iluminados que impõem essa representação do passado imporão, no futuro, que um eventual Museu da III República Portuguesa (iniciada em 1974) tenha de ser centrado em aspetos positivos inegáveis, porém os negativos também o são. Guerras civis devastadoras deixadas na África pós-colonial, três bancarrotas, mortes por incúria do estado e dos seus governantes, degradação das instituições (justiça, ensino, família, segurança, obras públicas, entre outras) – nada disso existiu na atual III República? É por isso que vamos denegrir a época histórica da democracia?
Portugal é apenas uma variante, no Ocidente, de um programa progressista-esquerdista de eugenia da memória social, a versão cultural da lobotomia que deveria integrar, tal como a lobotomia neurocirúrgica, o cardápio de crimes contra a integridade mental (e física) do ser humano.
Não temos todos a obrigação moral e cívica de recusar este destino ou, no mínimo, de o questionarmos?
Autor de Um século de escombros – Pensar o futuro com os valores morais da Direita (clique na capa para aceder a parte do conteúdo).