O que dizer do hábito crescente de no final do ano nos revelarmos através da música que ouvimos? O Spotify permite que exibamos com vaidade os artistas e as canções ouvidos que assim revelam a qualidade das nossas escolhas, o critério da nossa audição, a vocação que temos, enfim, para a grandeza pública. Até eu me sinto tentado a integrar o cortejo e confirmar as melhores expectativas que certamente as pessoas alimentam acerca do meu esclarecimento musical e, quem sabe, surpreender até por um qualquer elemento inesperado. Mas nos últimos dois anos resisti. Talvez não seja sensato confirmar a vocação que tenho para a grandeza através dos sons que ouço.
Quando falamos de vocação, falamos de ouvir uma voz. Por trás da ideia profissional de vocação há toda uma longa história religiosa. Hoje temos profissões sem recordar que na origem da ideia está a necessidade de ouvirmos a voz de um Deus que nos chamava. Quem continuar a acreditar em Deus hoje saberá, por isso, que ouvir a voz é o mais importante de tudo, uma vez que na história da Criação foi essa voz divina que deu origem a todas as coisas—até ouvirmos a voz ainda não começámos realmente a viver, dirá um pregador de profissão como eu. Logo, quando falamos acerca de vocação não estamos apenas a falar do que devemos fazer, profissionalmente ou noutro campo qualquer; falamos de quem somos (ou, pelo menos, do que devemos ser).
O mundo começou com a versão perfeita do “Let It Be” dos Beatles (e a minha relação com os Beatles não é propriamente fácil). Deus disse uma espécie de “deixa ser” e daí veio a luz: “deixa ser a luz” e a luz apareceu (Génesis 1:3). A importância da palavra entre cristãos nunca é demais também porque é ela que traz a voz que dá origem ao conceito de vocação. Não sabemos viver sem palavras e isso leva-nos, consequentemente, a não saber viver sem cruzá-las com a música. Canções são também modos de a palavra começar universos novos em nós.
Curiosamente, a primeira vez que a música entra explicitamente na Bíblia não é num tom feliz. Jubal, descendente de Caim é descrito como “o pai de todos os que tocam harpa e órgão” e Tubal-Caim era “mestre de toda obra de cobre e de ferro” (Génesis 4:21-22). Os homens desta família foram os primeiros construtores de cidades e quando antes chegámos a Lameque, o primeiro polígamo e pai destes dois (filhos de mães diferentes), ele diz assim: “ouvi a minha voz; vós, mulheres de Lameque, escutai o meu dito: porque eu matei um varão, por me ferir, e um jovem, por me pisar. Porque sete vezes Caim será vingado; mas Lameque, setenta vezes sete” (Génesis 4:23-24). É como se fosse uma canção, neste caso, gangsta style. Não te metas com este pessoal que estes artistas não estão a dar chance à paz.
No segundo livro da Bíblia, a música vai recuperar alguma reputação quando “Miriã, a profetisa, a irmã de Arão, tomou o tamboril na sua mão, e todas as mulheres saíram atrás dela com tamboris e com danças. E Miriã lhes respondia: Cantai ao Senhor, porque sumamente se exaltou e lançou no mar o cavalo com o seu cavaleiro” (Êxodo 15:20-21). Agora a música não serve para dizermos que somos fortes, como no caso anterior da Família Caim, mas para dizer que forte é Deus. Nem os cavalos e os guerreiros conseguem fazer frente à mão do Criador.
A partir daqui a música na Bíblia usará as vozes das pessoas que se ligam à voz original, do verbo eterno. A música funcionará como um modo de “Don’t Stop Believin’” dos Journey porque continuar a acreditar é continuar a ouvir a voz original. A primeira voz proporciona que todas as outras possam responder — a vocação é a expressão de uma contaminação oral. Nesta medida, muitos encontram a sua vocação na música (sendo músicos profissionais, por exemplo) mas, mais do que isso, todos deveriam olhar para a vocação como uma forma de música: vozes que seguem a primeira voz. Falar de vocação é sempre falar de música.
Não tenho propriamente uma teoria musical para basear todas estas afirmações além da relevância natural que a música assume ao longo das Escrituras. Do Génesis ao Apocalipse, o nosso conhecimento de Deus pede que lhe rendamos os nossos cérebros, é certo, mas ainda mais que lhe rendamos a nossa vida toda — e render a vida toda a Deus só pode ser compreendido à luz da atitude que a adoração é. A adoração é a forma mais elevada da Teologia porque, pedindo palavras de nós, veste-as numa espécie de carne e sangue que é cantar. Quando cantamos louvores seguimos uma espécie de processo de encarnação que também foi o que aconteceu quando o verbo se fez pessoa em Jesus. As canções da nossa vida são o que distingue se ela se perde ou se salva.
Quando cantamos, a palavra exige coisas de nós. Emprestamos-lhe o próprio som das nossas vozes que é a resposta à voz de Deus, quer ela tenha sido ouvida ou lida—as palavras surgem mais encarnadas. A importância crescente dos relatórios das aplicações digitais de música coça esta comichão, com mais ou menos consciência da nossa parte. Mais do que mostrarmos a música que ouvimos, precisamos cantar a música que somos. O Apocalipse será uma hiper-revelação musical por excelência.