Não são apenas os sonhos que os americanos nos metem no coração através dos filmes, são também as maluquices que nos metem na cabeça através da farmácia. A cultura americana é tão omnipresente que o mundo está cada vez mais à sua imagem. Quantas vezes já ouvimos este tipo de queixas? Então, tenham a paciência de ouvir uma vez mais, agora a propósito de um livro fantástico chamado “Crazy Like Us—The Globalization of the Western Mind” (publicado em 2011 e ao qual cheguei pela newsletter do Rod Dreher).
A tese do autor, Ethan Watters, não é complicada: existe um processo de americanização mental em curso. Esta formidável terraplanagem psicológica avança globalmente ajudada pela indústria farmacêutica, esperando da academia o consenso e do resto do mundo o comércio. Simplificando o conceito de saúde, unanimiza-se também o que a loucura é. “A diversidade assinalável acerca do conceito de loucura que antes víamos entre culturas diferentes está a desaparecer rapidamente”, escreve Watters.
Não se dá, portanto, apenas o facto triste de termos de endoidecer todos da mesma maneira; ao mesmo tempo perde-se a riqueza de outros modos de encarar a própria natureza humana. Ainda que a intenção possa ser boa, o Ocidente corre o risco de impor o seu modelo de zelosa introspecção (ou, como a miudagem já diz no inglês original, a inescapável “self-awareness”). Uma vez mais, nada disto resultaria tão bem sem dois dos mais bem-sucedidos talentos americanos: a sua ciência e o seu comércio. Com um sistema de investigação universitária e clínica tão ginasticado e com uma clientela tão vasta, é difícil o resto do planeta ficar de fora.
No livro, Watters percorre quatro exemplos. O primeiro é o da chegada atrasada da anorexia à China. Ao contrário do Ocidente, o Oriente não tem na expressão individual o mesmo tesouro. As adolescentes orientais não viviam, por isso, o mesmo tipo de angústia de afirmação física que tende a caracterizar o ambiente onde condições como a anorexia nervosa se desenvolve. Com o mundo a americanizar-se, “torna-se mais provável que uma adolescente tente restringir-se de comida como um método de comunicar a sua tensão interna”.
À medida que a anorexia ganhava reconhecimento mediático, ajudada por uma Princesa Diana publicamente vulnerável, um alfabeto impunha-se para falar de tudo o que de parecido houvesse. Chega o tal momento em que já não se sabe se é o cão que abana a cauda ou a cauda que estabiliza o cão. Mais do que relativizar o sofrimento objectivo de quem anorético se reconhece, interessa a Watters compreender o que também é subjectivo e culturalmente particular na experiência do diagnóstico.
Algo parecido aconteceu no Sri Lanka depois do terramoto de 2004, quando um batalhão de terapeutas ocidentais chegou para, com toda a urgência, cuidar de uma população certamente destinada ao stress pós-traumático. Era imperativo zelar para que as vítimas daquele desastre não entrassem em negação, não se comportando de acordo com as expectativas ocidentais de obrigatória exteriorização emocional.
A Pfizer também não demorou, providencialmente munida de anti-depressivos que distribuiu com generosidade. Os investigadores pontualíssimos foram, agarrando a oportunidade que o tsunami lhes deu de preencher as suas checklists. Os resultados, no entanto, não batiam perfeitamente com as expectativas: “sem o desligamento entre mente e corpo, tão comum ao pensamento ocidental, as pessoas do Sri Lanka reagiam ao desastre como se tivessem passado por um golpe físico (…) e tendiam a ver as consequências negativas em termos de estrago nas relações sociais”. Não só cá dentro, a tragédia doía lá fora. Parece que as reacções ao trauma são menos universais do que pensamos, sobretudo quando a cura americana se especializa num modelo particular de empatia.
Outra aventura de Watters aconteceu quando estudou a esquizofrenia no Zanzibar, espantado com o facto de que os países menos desenvolvidos mostram maior recuperação, ao mesmo tempo que enquadram a doença num contexto mais religioso do que clínico. E uma ironia irrompeu: onde se assume que a pessoa pode descontrolar-se pela influência de espíritos, ela não é tão ostracizada como quem recebe um diagnóstico de doença mental. E dessa solidariedade nasce um convívio em que o estigma não se abate com a mesma intensidade sobre quem sofre—também parece ser daqui que vêm as melhoras que o Ocidente não regista. “Aqueles que adoptavam crenças biomédicas e genéticas acerca da doença mental mais frequentemente eram quem queria menos contacto com quem sofre de doenças mentais, e tomavam [os doentes] como perigosos e imprevisíveis.”
O último caso remete ao desembarque da depressão no Japão. No Japão há uma história que toma a melancolia como uma resposta possível e até nobre ao sofrimento que a vida normalmente traz. Não é estranho a isso, claro, o Budismo e outras tradições religiosas. Nessa medida, o mais próximo que havia da depressão americana, conceptualizada sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, não era necessariamente visto como um problema a ser resolvido. Tudo mudou com a associação do número elevado de suicídios à condição que o Japão hesitava reconhecer. Para este casamento acontecer não ficou de fora o investimento que a GlaxoSmithKline fez para encaminhar a pesquisa académica juntos dos maiores especialistas do país—uma doença também precisa do seu sector de marketing. “Na nossa busca pela promessa utópica de saúde perfeita, demos, sem compreender, acesso total aos marketeers para controlarem os verdadeiros instrumentos da nossa liberdade: objectividade na ciência, ética e justiça nos cuidados de saúde, e o privilégio de dar à medicina a autonomia para cumprir o seu juramento de trabalhar em benefício dos doentes”, desfere o livro.
No fim de ler “Crazy Like Us”, concordei com muitas das incertezas de Ethan Watters. Ninguém negará que tempos difíceis nos testam os conceitos de sanidade. E se isso não nos deve levar a acreditar menos na ciência clínica, também não deve ser um argumento para descartar o papel que o ambiente cultural desempenha. Afinal, todos sofremos num tempo e num espaço. Para mim, que enquanto pastor evangélico faço por participar da saúde de quem na minha comunidade sofre mentalmente, a esperança está precisamente num Deus que se fez pessoa, limitado por um tempo e um espaço para que não fiquemos nós, noutro tempo e noutro espaço, aquém da sua presença. Cristo é Deus a aceitar que não há realidade sem contexto.
Por isso, suspeito, como Watters, que o excesso de instrospecção à americana produz o ricochete de impedirmos que o sofrimento subjectivo cá dentro seja mais iluminado pelo que objectivamente está lá fora. Nessa medida, a nossa obsessão por saúde mental está bastante fechada em parâmetros que aceitámos com pouco poder crítico. Como escrevi na semana passada, não me passa pela cabeça negar que malucos somos todos. Mas construir, a partir da nossa loucura, uma cerimónia de coroação da medicina ocidental é um filme fantástico made in USA, o país que nunca teve monarquia.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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