“O difícil não é saber o que é necessário fazer, é mostrar como deve ser feito.”
Espinosa

Tenho acompanhado com interesse e como dever de cidadania a evolução das Políticas de Saúde. Revi textos escritos e recentemente e publicados onde analisei alguns problemas e sugeri algumas propostas. Não sou, pois, indiferente!

As reivindicações médicas que marcaram o segundo semestre de 2023 foram justíssimas. De facto, a política que abusou de indiferença para com os profissionais, médicos, enfermeiros e técnicos, que descurou as carreiras profissionais, desvalorizou o espírito de serviço, a responsabilidade e a hierarquia profissional, não podia continuar. E se acrescentarmos a tudo isso os adiamentos e atrasos nos concursos para progressão nas carreiras médicas e de enfermagem também, o recurso excessivo e inaceitável de trabalho extraordinário – segundo a imprensa nos primeiros 3 meses de 2024 os médicos terão esgotado as horas extraordinários do ano inteiro! –  e os baixos salários-base, temos uma mistura letal e justificação para essas reivindicações. Os governos do passado mais recente também não enfrentaram estes problemas. Optaram por alargar o trabalho extraordinário, valorizaram mais a hora de trabalho dos médicos tarefeiros para os serviços de urgência do que a dos médicos vinculados às Instituições. Como então escrevi, criou-se e consolidou-se um mercado de trabalho distorcido.

Há problemas que marcaram os governos do passado recente e são herança para o novo governo: i) a pletora de doentes nos serviços de Urgência e o funcionamento atribulado destes serviços ii) os números assustadores de doentes graves e oncológicos que em Março de 24 existiam nas listas de espera para cirurgias iii) o incremento de cidadãos sem médico de família cerca de 1,7 milhões iv) ausência efectiva de medidas políticas e administrativas para a sua resolução.

As necessidades de Saúde dos cidadãos não são consequência exclusiva da Pandemia. Mas ficou um lastro. E sobre tudo isso se escreveu e alertou nos últimos anos. A que se deve acrescentar os atrasos nos rastreios e a mortalidade excessiva e em idades mais jovens, sem que sejam disponibilizados dados objectivos para a análise dessa realidade tão preocupante.

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A situação de disfunção no sector público da Saúde coincidiu com três realidades. A primeira, discurso e praxis dos responsáveis políticos dominado pelo preconceito ideológico sobre o SNS e ostracização do sector privado e também social, mesmo contra as avaliações oficiais e a opinião das populações (hospitais em regime PPP em Loures, Braga e Vila Franca de Xira). Esse preconceito foi premiado pelo aumento muito significativo do orçamento do SNS, sem efectiva contrapartida na eficiência. A segunda, maior procura de seguros de Saúde e na utilização das instituições privadas e de cariz social: cerca de 40% da população portuguesa tem dupla ou tripla cobertura, o que traduz a percepção pública de disfunção no SNS que coexiste com os dados dos relatórios europeus, que evidenciam serem os portugueses dos europeus que mais dinheiro gastam do seu bolso para as despesas em Saúde. E a terceira, posta em evidência na Pandemia, que foram as carências do sector de Cuidados Continuados e a menor contribuição pública em Portugal para este sector, quando comparado com a média europeia.  Para além das dificuldades reconhecidas e ainda não ultrapassadas no sector público na Saúde Mental e também na Saúde Oral. Mencionar estas realidades, tentar analisar os problemas sob outras perspectivas e procurando outras soluções, que preservando a centralidade e relevância do SNS, mas aproveitando os recursos existentes num sistema de Saúde que foi sempre misto, continua a ser anátema, mesmo para aqueles que tiveram tempo e oportunidade para agir. No recurso à colaboração público-privada na Saúde, foi repescado pelo actual líder socialista o discurso requentado – querem entregar o SNS aos privados – mais uma vez ignorando uma realidade que os cidadãos experimentam diariamente: a colaboração público-privada no serviço farmacêutico, uma parceria fundamental entre Estado e sector privado, na hemodiálise para os insuficientes renais crónicos, para as análises laboratoriais e exames de imagiologia.

Sem essas parcerias o leitor já pensou no que aconteceria? Uma duplicidade ideológica incompreensível!

A competição entre SNS e os sectores privado e social poderá ser salutar, desde que asseguradas e monitorizadas eficiência e qualidade nos dois braços do sistema. Como reconheço que o sector público é apoio indispensável em muitas situações graves e/ou prolongadas que ainda não encontram resposta total no sector privado. O SNS não é só uma escolha por necessidade financeira, é também escolhido pela qualidade e competência dos serviços que presta. O sector privado e também o social, evoluíram nestas 4 décadas, cresceram, diferenciaram-se e do carácter supletivo que marcou os tempos iniciais do SNS, começou a tornar-se competitivo e disputa os recursos humanos qualificados, perante indiferença dos responsáveis pelo serviço público.

Terei, então, razões para optimismo, ainda que moderado? Analisemos algumas das medidas propostas recentemente e com as quais concordo:

1. Compromisso com os profissionais: o novo governo deu passos na direcção certa e aparentemente contribuiu para reduzir crispação com os profissionais de Saúde. Mas compromisso é um acto de confiança numa estratégia de acção partilhada, clara e consequente. Não é legítimo esperar que se resolvam problemas de décadas como num passe de mágica. Mas é necessário reafirmar que os médicos e outros profissionais de Saúde são os principais aliados, tão interessados no sucesso das reformas, como os doentes e como os governantes. E é fundamental que a confiança não seja defraudada por medidas avulsas e incoerentes.

2. Programa de Emergência: mobilizando os sectores privado e social numa Parceria para a Saúde, complementar do serviço público para as áreas mais carenciadas e mediante contratualização séria e da qual se avaliem resultados e se prestem contas. Exigente na qualidade e eficácia, através de governação clínica transversal a todo o sistema e informação rigorosa.

3. Reforma na Medicina Ambulatória integrada nos Cuidados Primários de Saúde. Há anos que muitos de nós acentuaram a necessidade de capacitação dos Centros de Saúde em meios de diagnóstico laboratorial e imagiológico e com horários adequados para poder responder à procura de serviços de urgência hospitalar pela população que não encontra outra resposta. Sugeriu-se até que essa restruturação deveria ser baseada nos ACES (Agrupamentos de Centros de Saúde) agora integrados nas Unidades Locais de Saúde (ULS), identificando necessidades e melhorando a articulação com os hospitais permitindo modular e reduzir a procura da urgência hospitalar.

Foram agora anunciados Centros Clínicos Permanentes que procurarão colmatar esta necessidade. Veio à memória o exercício tentado na década de 70 e princípio dos anos 80 dos SAP (Serviços de Atendimento Permanente), sem análises nem radiografias no local. Foram tentativa de controlar o acesso á Urgência, muitos ainda recordam que foi experiência útil, interrompida pela implementação do SNS. Haverá médicos, enfermeiros e técnicos? Porventura poder-se-á reorientar o mercado de tarefeiros, dos hospitais para esses novos Centros Clínicos – a articulação no contexto das ULS poderá facilitar. Parece-me uma medida adequada e necessária, precisará de condições para que possa funcionar e dos meios humanos, laboratoriais e imagiológicos essenciais.

4. Agenda para a Qualidade que passará pela incorporação de regras de Governação Clínica institucional aplicadas de forma transversal a todo o Sistema de Saúde português, anunciadas como objectivo. O reforço do programa SINAS ou a utilização de outras ferramentas como o IASIST, ambos já utilizados em instituições do SNS, serão instrumentos fundamentais e que permitirão certamente comparabilidade da eficiência dos serviços, benchmarking e formação de Valor pela implementação da Qualidade.

5. Recurso à moderna Tecnologia de Inteligência Artificial, não para substituir profissionais, mas para organizar e promover circulação da informação, facilitar o diálogo entre os diferentes sectores, organizar a actuação administrativa e assegurar compatibilização dos diferentes sistemas de armazenamento da informação. E a defesa da privacidade do doente.

Pude testemunhar no 2.º Cascais Health Forum – qual palito no bolo – que existem vitalidade, iniciativas e abertura nos sectores público, privado e social para realmente enfrentar e procurar resolver os constrangimentos actuais. A Sr.ª Ministra da Saúde na sessão de abertura da reunião invocou dois conceitos fundamentais. Primeiro, a necessidade de Saúde em todas as Políticas porque é indispensável intervenção multidisciplinar e multissectorial, transversal, no governo e na sociedade, em Educação para a Saúde, com especial atenção à juventude e privilegiando actuação na Escola, na Prevenção das Doenças, no combate à pobreza de parte significativa da população, na habitação decente, no fomento de literacia digital na população e na mobilização de recursos para os Cuidados Continuados. As carências nestes domínios têm impacto significativo na Saúde. E em segundo lugar a importância de Parceria para a Saúde aproveitando a capacidade instalada nos sectores privado e social quando apropriado e necessário, mas mantendo o eixo de acção fundamental de actuação no SNS. Ultrapassou um discurso político de defesa à outrance do modelo público num sistema que efectivamente é misto. Foi reconfortante. E merecia discussão séria e informada e não slogans do Passado!

Karl Popper salientou, no seu livro A Sociedade Aberta e os seus Inimigos a importância de free competition of thought (livre concorrência das ideias) como elemento essencial para o progresso na sociedade. O caminho seguido desde 2018, de ensimesmamento, preconceito ideológico, apelo aos mitos fundacionais do SNS, nomeadamente independência total face ao sector privado – que nunca se verificou, o SNS sempre precisou do sector privado e social desde o seu início – em detrimento de pragmatismo inteligente e acção consequente, tem um fim: insuficiência, empobrecimento e disfunção do SNS, percebido como a doença da Saúde e uma escolha por necessidade. O que seria profundamente imerecido.

Espero e confio que a nova Política de Saúde não seja mais uma oportunidade perdida!