If you don’t know where you are going, any road will get you there (Lewis Carroll)

Vivemos momento decisivo para o futuro da saúde em Portugal. A situação, tal como se apresenta, é insustentável, serviços de urgência em áreas fundamentais funcionando intermitentemente pode conduzir à rotura. Não é alarmismo, é realismo. Circunstâncias excepcionais exigem medidas igualmente excepcionais, mas importa que não sejam atalhos de sucesso fácil que comprometam o futuro.

Pertenço à geração que cresceu e se realizou pessoal e profissionalmente servindo o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e que procurou contribuir para o seu desenvolvimento. O SNS foi, talvez, o projecto colectivo mais bem-sucedido com impacto directo e imediato na vida de todos nós. Por isso, nem indiferença, nem neutralidade serão toleradas, Dante considerava-as motivo de castigo no fundo dos infernos!

Como se chegou ao impasse atual?

Não é fácil a resposta, tem múltiplas causas. Analisemos algumas:

Incapacidade de decisão e de compromisso político. Factos históricos, passados e recentes na Educação, localização do aeroporto, reviravoltas políticas em empresas como a TAP, entre outros, evidenciam paragem na continuidade de políticas necessárias para além dos ciclos eleitorais e na dificuldade do compromisso político. Será idiossincrasia nacional? Nós portugueses somos incapazes de decidir, porque queremos as vantagens duma política e da outra, diametralmente oposta como há anos me recordaram. Governar é saber escolher e a Democracia proporciona mais que qualquer outro modelo de governação, diversidade de propostas, diálogo informado e tolerância. Mas tem uma exigência: respeito pela Verdade e compromisso irrecusável com o Bem Comum. Essa é a bússola democrática que não deve ser sacrificada à popularidade fácil ou ilusionismo político para gáudio de plateias. Compromisso para uma Política de Saúde é indispensável.

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Evolução e mudança. Nestes 50 anos o mundo, a sociedade e a Medicina mudaram. Nas duas primeiras décadas o SNS e sector público foram dominantes, o sector privado claramente supletivo, reservado aos grupos mais afluentes da população e aos beneficiários de grandes empresas públicas ou privadas que convencionavam prestação de serviços clínicos. Esta realidade mudou e duas necessidades foram convergentes. A primeira, resultou da maior complexidade da prática médica, multidisciplinar e tecnológica e, por isso, substancialmente mais cara que o acto médico individual e exames de diagnóstico mais simples e económicos. A segunda, resultou da necessidade de contenção de custos e das disfunções cada vez mais gritantes dos grandes serviços públicos, praticamente em todos os países onde vigorava este modelo de organização pública que designamos por beveridgiano em homenagem a Lord Beveridge fundador do NHS britânico do pós-guerra. A emergência dos seguros de Saúde, privados, frequentemente associados à indústria bancária, e públicos como a ADSE entre nós, foram realidade na maioria dos países europeus, com maior ou menor peso de seguro social de saúde, público e obrigatório, modelo que designamos por bismarkiano recordando a sua origem na política social do Chanceler Otto von Bismark no século XIX.

O impacto em Portugal foi significativo: 35 a 40% da população usufrui cobertura dupla e às vezes tripla: SNS, ADSE para os funcionários do Estado, e privado. A opção pelo SNS é constitucional: é um serviço universal, tendencialmente gratuito. Veio acumulando disfunções no acesso, ausência de liberdade de escolha – um valor social que conta – e listas de espera persistentes, o que justificou a procura de cobertura privada. Mas a opção SNS é essencial, pelas limitações na resposta privada, nas grandes catástrofes médicas e para os tratamentos muito caros frequentemente não cobertos pelos seguros.

Não obstante a gratuidade tendencial do SNS os portugueses lideram o pelotão dos cidadãos com maiores custos directos – out of pocket – com maior impacto directo em despesas catastróficas em relação ao seu salário, como o recente relatório da OCDE Health at a Glance evidenciou.

Mudança de contexto. O sector privado passou de supletivo a competitivo, disputando ao SNS quer doentes, pela maior rapidez e capacidade de escolha, quer recursos humanos, médicos, enfermeiros e técnicos, com propostas de trabalho e remunerações mais atractivas. Esta mudança decorreu sob beneplácito e/ou indiferença de sucessivos e variados governos sem verdadeira regulação que potenciasse competitividade salutar e cooperação. E com alguma indiferença da Ordem dos Médicos, demasiado focada nas vicissitudes do serviço público, como se os problemas da Qualidade da Medicina, das carreiras profissionais, da formação pós-graduada, do desenvolvimento profissional continuado e da recertificação profissional não fossem transversais a todos os sectores.

Mas esta mudança foi uma válvula de escape para as necessidades médicas dos detentores de seguros e/ou ADSE, que também pagam o SNS pelos seus impostos. Uma nota frequentemente esquecida. Mesmo nos anos 80 e 90 o sector privado foi introdutor de inovação no diagnóstico laboratorial e imagiológico – o SNS só anos depois se equipou adequadamente – na hemodiálise, onde a intervenção privada permitiu repatriar as centenas de doentes que se tratavam nas clínicas espanholas que pulularam na fronteira e noutros sectores que me abstenho de mencionar. Não foi, portanto, um sector só parasitário das sobras do SNS! E eu vivi esse período e recordo bem as suas vicissitudes.

A leitura simplista que, no contexto actual, sugere que o SNS se destinaria aos destituídos financeiros e o serviço privado um exclusivo dos mais ricos é inaceitável! É um slogan, não corresponde à realidade e não serve nenhum propósito sério.

Ausência de resiliência do SNS. Resiliência não significa apenas resistência ao esforço, pressupõe adaptação e inovação. Um colega, cirurgião em S. Francisco relembrou-me a máxima que nunca esqueci: never be a prisoner of your past; it was just a lesson not a life sentence. Não ficar prisioneiro do passado, mas procurar soluções para os problemas aplica-se, também, às organizações sociais.

Há décadas que se vem alertando para as mudanças de contexto e necessidade de novo enquadramento, na coexistência inevitável dos sectores público e privado, na necessidade de novas regras de gestão e organização e outra política de recursos humanos no SNS, capazes de captar o interesse (hearts and minds) dos seus profissionais. Prisioneiro em epistemologia comprometida, indiferente às sugestões de mudança tidas como violação da utopia fundacional dum SNS dominante – a exclusividade foi perdendo peso relativo – e culpabilizando sempre que necessário o Passado, prevaleceu imobilismo e indiferença, só mantidos pelo notável incremento do financiamento público – quase € 15 mil milhões – sem que houvesse melhoria significativa das suas disfunções. E a Pandemia não explica tudo!

Esta é a realidade, a essência da doença que afecta o SNS, e pior que ter uma doença é ser uma doença.

Que fazer?

Parece-me indispensável distinguir entre:

Acção imediata. Partilho da opinião que a realidade actual é insustentável mas reconheço a dificuldade. As reivindicações médicas são justíssimas. Chegou-se ao fim de uma política que abusou de indiferença para com os profissionais, médicos, enfermeiros e técnicos, recorrendo a todos os ardis estratégicos, da diversidade de horários que desvaloriza espírito de serviço, responsabilidade e hierarquia profissional, ao recurso excessivo e inaceitável de trabalho extraordinário e ao estímulo para o duplo emprego potenciado pelos baixos salários. Por si só justificariam um longo artigo na sua defesa. Mas, como cidadão, percebo o constrangimento oficial e a repercussão que cedência total suscitaria. Compromisso entre as partes é necessário e a sugestão do Presidente do SIM, certamente partilhada pela sua colega da FNAM, dum faseamento na reposição salarial e redução da exigência absurda de horas extraordinárias pareceu-me razoável e trabalhável.

Plano estratégico a médio prazo. Sem a tentação de soundbites e slogans e ultrapassando as armadilhas epistemológicas. A realidade é que existe um Sistema Nacional de Saúde e os componentes privado e social tem hoje uma dimensão que deve ser utilizada para o bem comum. Parceria estratégica entre os diferentes sectores é uma necessidade, não pode continuar a ser anátema e conceito a exorcizar. Deve ser universal, para todo o Sistema em:

  • Política de qualidade e cultura de avaliação baseadas em indicadores fiáveis e reprodutíveis e que sirvam de medida e estímulo para a boa medicina.
  • Financiamento negociado e transversal para o Sistema de Saúde assente em valor e eficácia.
  • Política de recursos humanos que promova fidelização dos profissionais às instituições e liberdade de escolha informada dos cidadãos.
  • Regulação da competitividade no sistema, privilegiando eficácia e poupança e disrupção de serviços.
  • Reforço do investimento nos Cuidados Primários de Saúde e na sua capacidade de intervenção como triagem adequada para as urgências hospitalares.
  • Cooperação entre todos os patamares de intervenção em Medicina Clínica, cuidados paliativos e continuados tendo em conta a demografia e a prevalência de doenças crónicas com incapacidade.
  • Política para a Educação Médica e dos outros sectores profissionais e promoção de investigação e inovação no Sistema de Saúde.

O verdadeiro desafio é o direito à Saúde e à Medicina Clínica, sem discriminação social, económica ou outra e em tempo oportuno, a custos controlados (affordable), sem taxa de esforço ou despesa pessoal catastrófica, num contexto nacional que defenda equilíbrio da despesa pública – temos memória das consequências do contrário – e sem quebrar a solidariedade social que é um valor civilizacional. Este é o verdadeiro serviço público e é compatível com um novo SNS, ultrapassando velhas dicotomias entre modelos beveridgianos e bismarkianos, como está a acontecer noutros países e tem sido mencionado entre nós e sem o ensimesmamento que centra acção reformista apenas nos recursos do sector público.

Nunca é fácil mudar. Espinosa dizia que o difícil não é saber o que é necessário fazer, é mostrar como deve ser feito. É complexo e requer compromisso político sério. Já se perdeu muito Tempo e Oportunidades.