1. Seja bem-vinda a “Iniciativa Liberal” à defesa da futura reforma do Estado, que será histórica do terceiro milénio: «Aplicar em pleno o princípio da subsidiariedade…» —  como se lê no seu programa.

 Quem aqui escreve tem como profunda convicção que, já em pleno terceiro milénio, as orientações políticas se devem basear, mais e melhor do que nunca, em doutrinas desenvolvidas a partir do reconhecimento da preeminente dignidade da pessoa humana (e da vida social harmónica com essa preeminente dignidade). É isto mesmo o que actualmente se postula na ampla consensualidade do constitucionalismo moderno. E é o que diz a nossa Constituição, logo nas primeiras palavras do seu articulado: «Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana» (art. 1.º). Está tudo dito. Mas é preciso densificar.

2. A dignidade da pessoa humana é definida por Kant na afirmação de que os seres humanos são fins em si; e portanto não são simples meios de que uma vontade colectiva possa dispor politicamente. Pelo que não é legítimo que (através de políticas públicas) um Estado-Governo lhes venha substituir outras finalidades, ou impor caminhos que levam a outras finalidades.

Pelo seu lado, a doutrina social da Igreja (que, a título de declaração de interesses, o autor destas linhas aqui confessa que admira), define assim, em termos muito significativos, o lugar da pessoa humana na vida socio-política: «toda a vida social é expressão do seu inconfundível protagonista: a pessoa humana»; e acrescenta: «longe de ser um objecto e um elemento passivo da vida social, pelo contrário, [a pessoa humana] é, deve ser e permanecer, o seu sujeito, o seu fundamento e o seu fim» (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, § 106). Dificilmente se diria melhor.

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3. É evidente que, tanto da definição “laica” de Kant, como da definição cristã da Igreja Católica (que foi e é ainda fundadora da cultura ocidental), se tira concludentemente uma severa “limitação” ao âmbito, grau e carácter de intervenção dos poderes políticos de governo. A grande “revolução” do constitucionalismo da Revolução Liberal (culminante nos fins do séc. XVIII), foi colocar na precedência e na fundamentação do direito político o princípio da dignidade da pessoa humana. E mais especificadamente, a garantia dos direitos e deveres inatos que são expressão e servem de plinto a essa dignidade. Para alguma vergonha dos neo-jacobinos destes nossos dias (que estão sempre a negar aos cidadãos as suas liberdades pessoais de escolha, impondo-lhes monopólios prestativos públicos-governamentais), talvez valha a pena recordar o que ficou claramente escrito na Constituição Política francesa de 1793: «O fim da sociedade é o bem comum. O Governo é instituído para garantir ao homem o poderio [“la puissance”] dos seus direitos naturais e imprescritíveis». Além de distinguir entre bem comum e direitos pessoais «naturais e imprescritíveis), esta notável disposição constitucional francesa também distingue (e bem) entre Sociedade Civil e Estado-governo — e não para pôr o Estado (“público”) acima da Sociedade (“privado”), como hoje sofremos em Portugal.

4. Ora é claro que o fim “comum” da sociedade é o fim “pessoal” dos seus membros. Se não fosse assim, teríamos uma “despersonalização da pessoa” no colectivo social. Isto é, teríamos, no mínimo, uma liberdade “à moda dos antigos” (na clássica distinção de Benjamin Constant); e, no máximo, um totalitarismo à moda dos exemplos do século XX. A Constituição da República Portuguesa, logo depois da proclamação dos primeiros direitos fundamentais, que são o direito à vida e à «integridade moral e física» (arts. 24.º e 25.º), reconhece a todas as pessoas (no art. 26.º, sob a rubrica «outros direitos pessoais) os direitos «à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade».

5. Tanto nos basta, no limite deste espaço, para concluir logicamente que a função de um poder político institucionalizado é irrecusavelmente de carácter limitado e instrumental, isto é, de natureza originalmente subsidiária. Nenhum homem tem o poder de governar outro homem. E um tal poder só lhe poderá ser institucionalmente atribuído a título limitado e subsidiário; nunca a título ilimitado e substitutivo. Todos os partidos autoritários e totalitários são centralistas. Basta isto para desconfiar do centralismo, como anti-democrático. Não por acaso, foram os marxistas, inventores do moderno partido único e totalitário, quem também inventou o supremo sofisma do “centralismo democrático”.

6. É neste contexto que saudamos o Manifesto da Iniciativa Liberal. Pessoalmente, respeitamos todas as suas propostas; mas não as partilhamos, sobretudo algumas de excessivo individualismo e relativismo “acultural”. Como se a pessoa humana pudesse (e devesse) viver a sua vida começando na tábua rasa. Como se ela não nascesse e não crescesse sempre vitalmente integrada numa comunidade, desde logo familiar mas não só. Como se ela não se humanizasse necessariamente numa cultura comunitária. E como se estes “valores” não devessem ser subsidiariamente apoiados pela política.

Mas saudamos cordialmente, na “Iniciativa Liberal”, isto sim, a defesa que anuncia do princípio da subsidiariedade. Porque vem, lúcida e decidida, para a batalha política interpartidária da reforma de Estado que será a histórica reforma do Estado no terceiro milénio: a da “democratização da democracia”. Isto é, a da democratização civil, (económica, social e cultural) da democracia política”.

ADENDA

Em 2001, e após vários anos de fortes iniciativas políticas, doutrinárias e até legislativas, a Itália fez uma importantíssima revisão constitucional, introduzindo na Constituição, em termos muito claros, o princípio da subsidiariedade. O novo artigo. 118.º consagra a “subsidiariedade vertical” (isto é, no interior da hierarquia político-administrativa), estabelecendo que “as funções administrativas são atribuídas aos municípios, salvo se, para garantir o seu exercício uniforme, sejam conferidas à província, áreas metropolitanas, regiões ou ao Estado, com base nos princípios de subsidiariedade, diferenciação e adequação”.

Quanto ao princípio da “subsidiariedade horizontal” (isto é, nas relações entre os poderes estaduais e os direitos e iniciativas dos cidadãos), o mesmo art. 118º consagra-o neste termos: «Estado, Regiões, Cidades metropolitanas, Províncias e Municípios favoreçam a iniciativa autónoma dos cidadãos, individualmente ou associados, para o desenvolvimento de actividades de interesse geral».

Note-se: para o desenvolvimento de actividades de interesse geral — não apenas para o desenvolvimento de interesses privados, como entre nós pretende a luta política contínua que o Estado faz contra a Sociedade Civil, impondo o “público” contra o “privado”.

Entretanto, a bibliografia italiana, mediática, política e jurídica, tem tratado intensamente esta problemática revolucionária. Mas nós, os portugueses, sabemos mais das tropelias do político Berlusconi do que destas importantíssimas opções constitucionais de um dos países mais evoluídos e respeitados do mundo em matéria de ciência e direito constitucional, que está connosco na União Europeia, a qual também assenta a sua intervenção jus-política no princípio da subsidiariedade, com a assinatura de Portugal.