Sem a morte de Fernão de Magalhães não teria havido circum-navegação e nada haveria a comemorar. Este é o profundo paradoxo de todos estes festejos que assinalam os 500 anos da partida de uma armada que deu a volta ao mundo, não em função de um objectivo definido, mas pelo simples instinto de sobrevivência e desespero de uma tripulação sem líder. O que veio a tornar Fernão de Magalhães uma figura planetária e memorável, não foram os seus grandes feitos – e houve muitos -, mas sim, aquele que acabou por ser o seu maior erro e lhe granjeou a morte.
Na verdade, Magalhães deu fisicamente a volta ao mundo, mas disso falaremos mais adiante. Em relação à frota que partiu a 20 de Setembro de 1519, de Sanlúcar de Barrameda, data que assinalamos esta sexta-feira, cabe dizer que nunca teve a intenção, nem declarada, nem oculta, de circum-navegar o planeta. Não era o seu propósito e, mais, estava até proibida de tal.
O rei de Espanha, Carlos I (e Imperador Romano-Germânico como Carlos V) escreveu a D. Manuel I garantindo-lhe que a armada guardaria as demarcações do célebre Tratado de Tordesilhas e que, por isso, não tocaria em terras sob a alçada de Portugal.
«…soube que vós tendes alguma suspeita que da armada que mandamos fazer para ir às Índias (…) mas porque disto não vos fique pensamento acordei em vos escrever pera que saibais que nossa vontade foi e é de mui cumpridamente guardar tudo o que sobre a demarcação foi assentado e capitulado com os católicos rei e rainha meus senhores e avós, que estejam em glória, e que a dita armada não irá nem tocará em parte que prejudique em qualquer coisa ao vosso direito (…) o primeiro capítulo e mandamento nosso que levam os ditos capitães, é que guardem a demarcação e que não toquem de nenhuma maneira e sob graves penas nas partes, e terras e mares que pela demarcação a nós nos estão assinaladas e nos pertencem e assim o guardarão e cumprirão; e disto não tenhais nenhuma dúvida. Sereníssimo e mui excelente rei e príncipe, nosso mui caro e mui amado irmão, Nosso Senhor vos tenha em sua especial guarda e recomenda.» (Carta redigida em Barcelona, a 28 de fevereiro de 1519.)
Então qual era a missão desta armada comandada pelo português? Tão-somente, conseguir o que Colombo apenas sonhara, chegar à Ásia rumando a ocidente. O que alcançou. Fruto da sua personalidade de “antes quebrar que torcer”, da sua disciplina, do seu empenho e perseverança, ao descobrir o “estreito” que hoje leva ao seu nome, conseguiu cruzar o continente americano e chegar ao mar do sul, que baptizou de “Oceano Pacífico”.
O que pretendia? Tinha como objectivo chegar às ilhas de Maluco (Molucas), ricas em cravo, uma especiaria rara e muito bem paga pelas casas nobres da velha Europa.
Porquê? Ora, porque o tratado de Tordesilhas tinha sido marcado num mapa plano, mas acreditando na esfericidade da terra, então aquele meridiano prologar-se-ia até ao outro lado do mundo, até à Ásia. Definindo esse ‘anti-meridiano’, Magalhães acreditava que tais ilhas ficariam na demarcação de Espanha, sendo que Carlos V poderia reclamar o território e as suas riquezas comerciais. Por ser um objectivo contrário aos interesses dos portugueses que tinham o monopólio daquele mercado, é que Magalhães foi considerado traidor em Lisboa, e D. Manuel I mandou até uma armada para o… deter, digamos assim!
Concluindo: a ideia era navegar o Atlântico para ocidente, chegar às ilhas de Maluco, marcá-las para Espanha, conseguir um feito naval, um golpe político, um enriquecimento pessoal, e regressar pela mesma rota.
E a circum-navegação? De onde surgiu?
Esta foi uma viagem longa e perigosa. Cruzaram mares (verdadeiramente) nunca dantes navegados, enfrentaram os frios e os gelos do sul, andaram pelo desconhecido. No mundo global de hoje, temos dificuldade em compreender o quão enorme e destemida foi esta façanha, mas foi enorme. Para além das intempéries, da fome, das doenças, Magalhães ainda teve de enfrentar rebeliões internas. Não fosse pela sua personalidade forte e justiceira, a armada teria ficado a meio caminho e todos tinham regressado a casa, passado uns tempos, cobertos de vergonha. Foi graças à sua crença que a armada testou os seus limites, encontrou o “estreito” e chegou, não às ilhas de Maluco, mas bem mais acima… às actuais Filipinas. Foi aqui que Magalhães, com o apoio do astrónomo e cartógrafo Andrés de San Martín, percebeu que o globo terreste era maior do que o presumido, e que os seus cálculos poderiam ter um ligeiro erro. Assim, ao contrário do que sempre acreditara, as ilhas de Maluco afinal… estavam na demarcação portuguesa definida pelo Tratado de Tordesilhas.
Tal constatação deixou-o um pouco perturbado. Talvez isso explique que se tenha demorado uns meses longe dos seus propósitos, empenhando-se na evangelização daquelas ilhas, algo que não lhe fora pedido. Graças a si, à sua semente, as Filipinas são a primeira nação cristã no Oriente. Foi a oposição de uma das ilhas que o levou a expor-se numa batalha tresloucada: com apenas sessenta homens, enfrentou mais de dois mil indígenas. Magalhães tombou em combate. Mais tarde, noutra ilha que se mostrara afável e acolhedora, os restantes oficiais caíram numa cilada e foram mortos à traição.
A armada ficou sem o grande líder, os barcos metiam água, sentiam-se perseguidos pelos indígenas daquelas paragens e pelos portugueses que estavam no seu encalço para os deterem. Havia que zarpar, regressar a casa. Por onde? Pela mesma rota? Na ausência de outras figuras de primeira água, Delcano assumiu o comando da frota e determinou que não. Estavam fragilizados, e não teriam condições para enfrentar de novo os perigos e aqueles rigores do clima gelado.
Como sobreviver então? Esquecendo o regimento da armada, as instruções d’el-rei e avançando pelo proibido mar português adentro. Foi assim que chegaram às Índias, desceram o Índico sem tocar terra, para que os portugueses não os atacassem. Contornaram o famoso “cabo das tormentas” nos fundilhos de África e subiram o Atlântico até Espanha. Determinada pelo desespero, pela sobrevivência, pelo desnorte de terem perdido o líder, Magalhães, cumpriam assim a famosa circum-navegação.
Então, Magalhães deu a volta ao mundo ou não?
Vamos dividir a resposta em duas partes. Por um lado, o que comemoramos, é a grande viagem que contornou o globo de uma só vez. Foi pensada e defendida por Magalhães junto do rei Carlos I, conseguiu provar experimentalmente que a terra era redonda, e chegou à Ásia rumando a ocidente, cumprindo um sonho dos Espanhóis. Um grande feito, já que cumpriu, no essencial, o grande ciclo dos Descobrimentos marítimos, iniciado um século antes, em Portugal. Sem os conhecimentos e a postura de Magalhães tal não seria possível, temos por isso muito que festejar.
Por outro lado, levanta-se uma dúvida: se Magalhães morre a meio caminho, nas Filipinas, não deu apenas meia-volta ao globo? Verdade. Mas também é certo que, ao serviço do rei de Portugal, já servira nas partes das Índias, combatido ao lado de Afonso de Albuquerque na conquista de Malaca, em 1511, e – segundo alguns documentos da época – terá seguido com o amigo Francisco Serrão até às ilhas de Maluco, no mesmo meridiano das Filipinas.
Ou seja, Fernão Magalhães abraçou o mundo em duas partes, com o braço direito ao serviço de Portugal, com o braço esquerdo, ao serviço de Espanha. E foi ainda o mentor da viagem que, dadas as razões apresentadas, cumpriu a primeira circum-navegação de uma só tirada. Uma viagem que começou a 20 de Setembro, cumprem-se agora 500 anos. Comemoremos.
João Morgado é escritor, autor do romance biográfico “Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraiso”, Esfera dos Livros, 2019 (www.joaomorgado.net)