Se uma pessoa se puser hoje a rever, do primeiro ao último episódio, as séries Sim, Senhor Ministro e Sim, Senhor Primeiro-Ministro, o mais provável é acabar a jornada feliz pela inteligência e talento com que aquilo, dos diálogos à representação, foi feito, e, simultaneamente, com um forte sentimento de nostalgia. Porque o tempo em que aquilo foi feito (os anos oitenta do século passado) é um tempo irremediavelmente diferente do nosso, e um tempo, sob muitos aspectos, bem melhor do que o nosso. Um tempo, sobretudo, com mais liberdade e mais espaço para tomar decisões.

Claro que o essencial das duas séries reside sobretudo na descrição dos processos sabiamente engendrados por Sir Humphrey Appleby através dos quais este impede Jim Hacker (o ministro, e, depois, primeiro-ministro) de tomar qualquer decisão. A partir de certa altura, a frase “É uma decisão muito corajosa, senhor ministro” provoca em Jim Hacker, que logo percebe que algo de mau se anuncia, um efeito inibidor quase imediato. Sir Humphrey procura, com método e artimanhas subtis, que tudo fique na mesma, e Jim Hacker normalmente lá acaba, a troco de um favor que Sir Humphrey lhe presta por uma trapalhada em que, com a mão dele, Hacker se meteu, por aceitar que tudo na mesma fique. As trapalhadas em que Hacker, movido por uma mistura de genuínas boas intenções adaptadas do ar do tempo e de apetite de popularidade (“Sou o líder deles. Devo segui-los.”) se mete percorrem praticamente todo o espectro dos problemas políticos, da educação ao terrorismo. De facto, as duas séries são quase uma enciclopédia na matéria.

Mas hoje em dia fica, como disse, uma nostalgia melancólica. Se nada muda, no fim, muita coisa podia ainda ser mudada, numa direcção ou outra (e, na realidade, foi-o). Hoje, aqui, não. O escopo daquilo que se pode fazer é mínimo. O que, se não impede as trapalhadas (como as actuais barafundas com a educação e a justiça), reduz drasticamente a possibilidade das alternativas efectivas. O espaço de deliberação foi profundamente reduzido com a crise, e, em consequência, também o espaço de acção. A realidade não perdoa. Eu sei que esta referência à realidade é por muitos vista como ideologicamente motivada e como sinal indubitável de pertença às mais sinistras escolas de pensamento da direita. Francamente, não creio que seja assim. Mas se assim for são as sinistras escolas que têm razão. É uma possibilidade.

Uma das pessoas entre nós que mais tem procurado contrariar o “argumento da realidade” é José Pacheco Pereira. Não tenho qualquer prazer em discordar do que ele diz, até porque durante anos a fio habituei-me a concordar com ele no essencial e quase sempre até no acidental. Mas, desde há um tempo já quase longo, apanho-me a maior parte das vezes (não no essencial do essencial, estou certo, mas no mais imediato) a ter a reacção inversa. A questão do espaço de deliberação e de decisão é uma dessas coisas em que o que ele escreve não me parece em nada ser plausível. Como não me parecem ser plausíveis as conclusões práticas que ele tira disso. O último artigo que escreveu no Público, “O «argumento Sócrates»”, ilustra bem o que quero dizer.

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O artigo destina-se a mostrar a ilegitimidade de usar o argumento da proximidade com Sócrates para criticar António Costa (que, como se sabe, foi o “número dois” de Sócrates e mostrou para com o legado deste uma relativamente contida benevolência). Estranhamente, Pacheco Pereira não assenta a sua argumentação em qualquer listagem de diferenças entre os dois. O máximo que faz no capítulo é afirmar que é mais provável, no caso de ser eleito primeiro-ministro, Costa repetir os erros de Passos Coelho do que os de Sócrates. O argumento é outro. Consiste em dizer que, por detrás das diferenças entre Sócrates e Passos Coelho, há uma profunda afinidade que os une. E que, em consequência disso, ninguém que manifeste alguma simpatia por Passos Coelho, em qualquer grau que seja, se encontra em situação de utilizar o “argumento Sócrates”, porque o que vale para Sócrates vale igualmente para Passos Coelho. Escapam a essa situação apenas aqueles que radical e simultaneamente criticaram, e criticam, Sócrates e Passos Coelho. Há pelo menos uma pessoa nessa condição: ele, Pacheco Pereira, que declara que se recusa a utilizar o “argumento Sócrates” sem ser “em tandem com o «argumento Passos Coelho»”.

Com todo o respeito, e Pacheco Pereira que me perdoe, o argumento não é convincente. Não porque não haja certas semelhanças (sociológicas, digamos) entre as carreiras de um e de outro – algo que, de resto, em nada os distingue de uma pequena multidão de outra gente menos bem sucedida no negócio político. O argumento não é convincente  porque, na lista das supostas malfeitorias de Passos Coelho, que quase o tornariam um duplo de Sócrates, Pacheco Pereira esquece algo de essencial: a situação. O grosso das políticas de Passos Coelho foi levada a cabo sob uma pressão externa que Sócrates nunca sofreu ou que, quando começou a sofrer, fez tudo para olimpicamente ignorar, até um passo antes do abismo onde íamos caindo todos. E mais: essa pressão foi largamente resultante da situação a que Sócrates nos conduziu. Não só ele, é claro, como nota bem Pacheco Pereira, mas muito ele, como Pacheco Pereira também reconhece. Isto vale a pena ser repetido vezes sem conta. E faz toda a diferença do mundo.

Pacheco Pereira avança igualmente a ideia de que, em dada altura, nomeadamente aquando da disputa dentro do PSD com Manuela Ferreira Leite, Passos Coelho e vária gente próxima dele surgiam, em muitas matérias, próximos das posições de Sócrates. É verdade, lembro-me muito bem. Pacheco Pereira extrai daí que isso retira qualquer autoridade a quem não se opuser denodadamente a Passos Coelho para criticar um eventual “socratismo” no PS. Francamente, não vejo a lógica da coisa. Uma coincidência política provisória (péssima, estou de acordo com Pacheco Pereira) não faz uma identidade. Como não consigo ver, contrariamente a Pacheco Pereira, uma maléfica unidade ideológica do Governo destinada a contribuir afincadamente para “destruir Portugal”, “destruir a sua economia e finanças”, “pôr em causa a sua independência”, etc. Vejo barafundas misturadas com acertos, incompetências com méritos, e por aí adiante, mas um tão fundo desígnio não. Contrariamente a Pacheco Pereira, não creio que tudo faça sentido e nada possa ser acidental. No que o Governo, de resto, não é muito original.

Não seria muito mais simples, criticar o Governo naquilo que ele efectivamente fez e faz de mal, e mostrar que as alucinações socráticas estão longe de voltar ao PS de Costa do que construir uma identidade entre Passos Coelho e Sócrates que, quanto mais não seja, a própria diferença das situações desmente? E reconhecer que, por razões que também têm a ver com certas formas da burocracia europeia, que muitas vezes Pacheco Pereira tão bem criticou, a imaginação política ficou reduzida ao mínimo?

Imaginemos, fingindo que não há nenhuma diferença entre Inglaterra e Portugal, uma conversa entre Sir Humphrey e Jim Hacker por cá nestes dias. E o mais que podemos imaginar é que é inimaginável. Porque até o nosso pobre Jim Hacker perceberia que não havia dinheiro para o mínimo dos devaneios destinados a assegurar-lhe popularidade. Era líder, mas, desgraça das desgraças, não os podia seguir. Pior. O próprio Sir Humphrey, resignado, o aceitaria no respeitante à sua classe. Resumindo: não tinha graça.