Começou, outra vez, a época de caça ao “fascista”. Tem sido assim desde sempre. As comemorações do 25 de Abril e do 1.º de Maio não são planeadas e executadas para unir os portugueses à volta das ideias da superioridade da liberdade e da dignidade do trabalho. São planeadas e executadas para dividir e excluir. Os radicais à esquerda tentam todos os anos impor as duas datas não como uma celebração, mas como uma prova de poder. E as provas de poder, como se sabe, precisam de inimigos. Por isso, nas últimas quatro décadas, aqueles que se reclamam como os únicos representantes do “verdadeiro” 25 de Abril e do “verdadeiro” 1.º de Maio têm inventado “fascistas” no PS, no PSD ou no CDS; nas colunas de jornais e nos comentários de televisão; nas ruas e nas empresas.

Estava lá tudo logo no início. O 1.º de Maio de 1975 veio poucos dias depois do 25 de Abril de 1975 — e esta evidência cronológica é importante porque em Abril o PS venceu as primeiras eleições livres em Portugal e o PCP teve um resultado que o colocou no seu devido lugar. Como Mário Soares recordaria mais tarde a Maria João Avillez, na manifestação do Dia do Trabalhador desse ano, Álvaro Cunhal “quis ganhar na rua o que perdera nas urnas”, vangloriando-se de ser o líder do “caudal impetuoso da dinâmica popular”. Quando Mário Soares e os socialistas chegaram ao estádio onde seriam as comemorações, tentaram barrar-lhes a entrada, argumentando angelicamente que o recinto estava cheio. Lá ao fundo, na tribuna, estava já o friso completo do regime: o Presidente da República, Costa Gomes; o primeiro-ministro, Vasco Gonçalves; vários ministros; os militares do Conselho da Revolução; e, claro, pairando triunfalmente sobre todo o espectáculo, Álvaro Cunhal.

Mário Soares lembra o que se seguiu: “Entrámos no estádio de roldão, em puro confronto físico, no meio de uma confusão indescritível. Atravessámos o relvado, abrindo caminho ao empurrão, ao soco e aos encontrões. Em certa altura, houve alguém que pretendeu esfaquear-me pelas costas e foi impedido por um soldado e um popular que seguiam logo atrás de mim”. Já perto da tribuna, o líder do PS percebeu que era o “fascista” da vez: “Quando lá chegámos, o Salgado Zenha e eu, ambos ministros do Governo, fomos impedidos de entrar por elementos da Intersindical que nos disseram que ‘os traidores da classe operária não tinham acesso à tribuna’”.

Nos anos seguintes e nas décadas seguintes, os “traidores da classe operária” iriam variar consoante as conveniências dos radicais de esquerda, mas podiam sempre basicamente ser descritos como qualquer pessoa que não tivesse o cartão de militante certo — ou que não cedesse aos seus interesses e conveniências. Ano após ano e década após década, esses “traidores da classe operária” continuariam a “não ter acesso à tribuna”.

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Com as comemorações do 25 de Abril passou-se exatamente a mesma coisa. Em 1975 houve eleições para a Assembleia Constituinte e em 1976 houve as primeiras eleições legislativas, por isso as celebrações foram contidas — mas, logo na primeira oportunidade, em 1977, os radicais de esquerda iniciaram a sua ação de vigilância, procurando em cada canto os candidatos a traidores da revolução. No seu artigo sobre a sessão de comemoração do Parlamento nesse ano, o Diário de Lisboa dirigiu o seu detetor de “fascistas” a todas as bancadas suspeitas. O primeiro sinal de tendência contra-revolucionária era a ominosa falta de cravos como adorno de vestuário. O jornalista apontou o dedo: “Apenas os comunistas ostentavam o cravo (símbolo da revolução) na lapela. Apressadamente, um a um deputados do PS e alguns mais do PSD remediaram o ‘problema’ com os cravos existentes (em abundância) junto da mesa da Assembleia. Do CDS ninguém se mexeu. Nenhum quis ostentar o cravo de Abril!”. Até hoje, 43 anos depois, a contagem dos cravos e a denúncia pública de quem não os usa tornou-se numa forma pacificamente aceite de distinguir os puros dos impuros.

Este ano, por causa do surto de coronavírus, a caça ao “fascista” começou um pouco mais cedo. O líder do exercício é Ferro Rodrigues, que escolheu João Almeida, do CDS, como alvo, ao repreendê-lo em pleno hemiciclo, dizendo que “uma das coisas que o 25 de Abril trouxe foi a vontade da democracia e da maioria”. Mais uma vez, o CDS — que, talvez não seja ocioso lembrar, foi fundado depois de um pedido expresso dos “capitães de Abril” a Freitas do Amaral — está a ser tratado como um repugnante covil de inimigos do povo. E João Almeida, que há poucas semanas era elogiado pela esquerda como a alternativa “democrática” aos perigos “populistas” de Francisco Rodrigues dos Santos, regressa agora ao inevitável papel de “fascista” disfarçado.

Nada disto é surpreendente. Aqueles que sempre tentaram transformar o 25 de Abril e o 1.º de Maio em datas de facção não podiam agora, por magia, passar a pregar a união. Na verdade, eles sempre quiseram que as coisas fossem assim.